Ana Mendes: "Há milhões de pessoas direta ou indiretamente afetadas pela inflamação de tipo 2"
Pouco conhecida pelo público em geral, a inflamação de tipo 2 é responsável por uma variedade de doenças que pensamos não ter qualquer ligação entre si, das alergias à asma, até a problemas de pele. O assunto esteve na sexta-feira em discussão, num congresso da Sanofi, na Base Aérea de Monte Real, em que especialistas nacionais e internacionais debateram os impactos na sociedade (incluindo económicos) desta condição. Entrevistámos a imunoalergologista Ana Mendes, responsável pela Unidade de Asma Grave do Centro Hospitalar Lisboa Norte e coordenadora do Grupo de Interesse de Asma da Sociedade Portuguesa de Imunoalergologia e Imunologia Clínica. A especialista explicou-nos o que está em causa e como devemos tratar-nos.
O que é a inflamação de tipo 2?
O nosso sistema imunológico está dividido, de uma forma simples, em dois grandes campos. A inflamação de tipo 1, em que há um determinado tipo de células e de mediadores, que estão essencialmente focados em combater as doenças bacterianas e as infeções a vírus, e uma inflamação de T2, com outro tipo de células e mediadores, que habitualmente não está tão evidenciada, e que nós temos aqueles principalmente para nos ajudar a combater as infeções parasitárias. O que acontece é que em algumas pessoas, a inflamação tipo 2 adquire um protagonismo maior do que aquele que era o adequado. Ou seja, nós temos os mediadores e as células de tipo 2 muito mais ativas. Ora como não temos muitas infestações parasitárias, especialmente no nosso país, que tem poucos parasitas, essa parte do sistema imunológico, quando fica mais ativa, vai provocar inflamação a outros níveis, vai nomeadamente ser responsável pela produção de anticorpos contra aquilo que chamamos os alérgenos, ou seja, substâncias que habitualmente não deveriam fazer mal, mas que o organismo vai reconhecer como se fossem uma entidade patológica e então vai desenvolver essa inflamação.
Tem então de haver uma intervenção de um parasita ou agente externo para que haja uma infeção T2?
Não. Nós temos lá as células, os mediadores, guardadinhos, que o nosso organismo já produziu. O nosso organismo já está brilhantemente feito e nós temos tudo programado: ele está lá guardado, digamos, para quando for necessário. Só que em algumas pessoas essa parte do sistema imunológico fica ativo, mesmo sem a existência dos parasitas, ou seja, é uma ligeira desregulação do sistema imunológico em que depois vai dar origem algumas doenças.
Doenças como...
Depende do órgão que é afetado... podemos ter asma, uma inflamação a nível brônquico, rinite ou rinossinusite, se a inflamação for a nível das vias superiores, portanto do nariz, da mucosa nasal... Podemos ter um eczema atópico, se for a nível da pele, também algumas inflamações ao nível do intestino, se for afetado o sistema digestivo...
Ora como esta inflamação T2 vai estar mais ativa para essa pessoa, é frequente que o mesmo doente tenha várias destas doenças ao mesmo tempo, porque vai ter, na sua base, o mesmo mecanismo inflamatório.
Quantas pessoas em Portugal sofrerão com este tipo de situação?
Doentes com asma rondam os 700 mil. Mas nós sabemos que, por exemplo, a rinite ou rinossinusite afeta muito mais. Pode afetar mais de 50% da população, em graus de gravidade diferentes.
São milhões de pessoas...
Sim, estamos a falar de milhões de pessoas que, direta ou indiretamente, acabam por ser afetadas por esta inflamação T2. Só com a dermatite atópica estima-se que ocorra em 14% da população mundial. Estamos a falar de muitos doentes com estas patologias que têm por base a inflamação T2. Infelizmente, só quando a situação é muito grave é que o doente acaba por procurar ajuda, ir ao médico. Muitas vezes são situações que são desvalorizadas, a pessoa habitua-se a viver com elas e acaba por ir facilitando.
Sente que está a haver um número crescente em Portugal deste tipo de casos?
Sim. O número de casos aumenta por duas razões: porque as pessoas estão mais atentas e procuram mais o médico; mas também a própria incidência está estimado que sim, que esteja a aumentar. E aumenta numa percentagem, para a doença respiratória, de cerca de 3% ao ano. É um valor bastante elevado. Tem a ver muito com a poluição, com a alteração da exposição ao meio ambiente, com o facto de já não termos contacto numa fase precoce com algumas coisas que antes tínhamos e isso fazia com que o sistema imunológico evoluísse de uma forma e agora, não tendo esse contacto, estando demasiado protegidos, pode evoluir noutro sentido. Portanto, está previsto um aumento progressivo de 3% nos próximos anos
Há alguma idade de maior risco?
São doenças que habitualmente surgem numa idade mais jovem, mas podem surgir em qualquer idade.
O uso da máscara nos últimos dois anos, agora retirada, está a agravar a situação?
Não. O facto de se ter usado a máscara diminuiu o número de infeções, diminuiu também o número de crise nalguns doentes. Claro que estarmos de máscara durante 2 anos também limitou a exposição a alguns vírus, a algumas bactérias, e tirando a máscara agora, repentinamente, faz-nos estar expostos a muitas dessas infeções e, portanto, agora, neste período, houve um aumento de alguns casos de gripe e constipações, que nos fez descompensar um bocadinho algumas rinites, algumas doenças de base.
Citaçãocitacao"Não foi o uso de máscaras que nos tornou mais frágeis, nem diferentes. Já não estávamos recordados de como era e, portanto, a [nossa] tolerância é muito menor."esquerda
Isso está a acontecer de facto, neste momento, em Portugal?
Sim, está, mas depois rapidamente vai ao lugar. E se calhar as pessoas sentem um bocadinho mais porque já não estavam habituadas e os sintomas já não são tão bem tolerados. Nós tivemos dois anos de máscara, os doentes que agravavam com as infeções respiratórias deixaram de agravar, porque deixaram de ter tantas infeções. E também os doentes que agravavam muito com os pólenes estiveram melhor porque usaram máscara grande parte do tempo. E este ano, de repente, tiraram as máscaras, ficaram sujeitos novamente às infeções, aos pólenes, voltaram as queixas. Não foi o uso de máscaras que nos tornou mais frágeis, nem diferentes. Já não estávamos recordados de como era e, portanto, a [nossa] tolerância é muito menor. E, por outro lado, a nossa memória é realmente curta: lembramo-nos lá como é que há 3 anos foi. Agora aconteceu não com a máscara, mas com o confinamento, um agravamento nalgumas queixas dos doentes alérgicos a ácaros, que é um alérgeno principalmente do interior, que vive nas nossas casas. As pessoas passaram muito mais tempo em casa, com muito mais pessoas em casa e isso fez com que estivessem expostas mais tempo a uma maior quantidade. Algumas pessoas que tinham já predisposição para alergia aos ácaros começaram a agravar ou a desencadear alergia.
Regressando à inflamação de tipo 2, ao que deve uma pessoa comum estar atenta para procurar um médico?
Temos de nos basear nos sintomas, na clínica. Não vale a pena estarmos a fazer análises ou testes antes de termos uma clínica que nos dá algum grau de suspeita. Estas doenças são habitualmente crónicas, com caráter recorrente. Quando a pessoa tem sintomas, mesmo que não sejam muito graves, quando está sempre com o nariz entupido ou a pingar ou a espirrar, ou está sempre com aquele pico, que nós dizemos que parece estar sempre a coçar a garganta... muitas vezes é interpretado como um tique. Ou então em termos de sensação de falta de ar, tosse que vai aparecendo, aparecendo e não passa... Ou a nível de pele, as pessoas conhecem bem o que é o eczema, que aparece principalmente na zona das dobras... Tudo o que seja recorrente, sintomas mesmo que de uma forma ligeira, deve motivar uma avaliação por um médico, que vai dizer se realmente se trata de uma destas situações ou não.
CitaçãocitacaoEstamos a falar de milhões de pessoas que, direta ou indiretamente, acabam por ser afetadas por esta inflamação T2. Só com a dermatite atópica estima-se que ocorra em 14% da população mundial.esquerda
Que tratamentos existem? A ideia que vulgarmente temos é que, para tratar alergias, não há muito a fazer além de tomar aquelas coisas que dão sono...
Nos já avançámos muito e há casos em que o tratamento é possível, mesmo nos mais ligeiros. Temos tratamento que é dirigido à parte da inflamação causada, portanto, depois de estar instalada a inflamação, e aí temos também os anti-histamínicos que agora já não dão tanto sono. E temos os medicamentos de ação local, para a asma. E há os tratamentos para a fisiopatologia da doença. Aqui podemos dividir por partes: quando temos uma alergia identificada, podemos tratar a alergia em si, com as chamadas vacinas da alergia. Isto permite que já não haja tanta inflamação. Depois, para tratamento da inflamação, não tratando a parte dos sintomas, mas nos mecanismos de base, temos então agentes biológicos, que são anticorpos que foram desenvolvidos contra alguns mediadores desta inflamação.
Pode dar-me alguns exemplos?
Temos anticorpos que são dirigidos diretamente contra a IgE - um anticorpo que está aumentado na inflamação tipo 2 -, que foi o primeiro a aparecer, para os casos em que há uma alergia declarada. Vamos atuar ao nível da resposta alérgica. Depois surgiram outros que estão mais direcionados para a inflamação, que nos permitem atuar contra várias patologias. Imaginemos um doente que tem asma e tem eczema grave, nós podemos utilizar o mesmo tipo de anticorpo e termos bons resultados a nível dessas patologias.
Mas continuamos a falar de tratar o paciente a nível de doença crónica. Não se trata de uma cura...
Sim. O único tratamento que pode mudar realmente o curso da doença é dessensibilização da alergia. Quando o doente é alérgico. Aí, podemos modificar o curso da doença. Os outros tratamentos, os anticorpos monoclonais, permitem-nos limitar os sintomas e tratar os doentes mais graves, bem como limitar a inflamação. Mas, de facto, se os suspendermos a inflamação volta.
E aplica-se a que alergias?
Às alergias respiratórias. Nas alergias alimentares só temos uma em que se aplica: a que existe a algumas proteínas que há nas frutas e vegetais, muito presentes no pêssego e frutos dessa família.