Amor moderno: uma entrega de flores que causou dor

A minha irmã e eu discutimos violentamente por causa das flores. Ela chamou-me cruel e acusou-me de a obrigar a fazer figura de parva diante de toda a gente que conhecia. "São apenas flores!", insistia eu.
Publicado a
Atualizado a

Com a melhor das intenções fiz, uma vez, uma coisa lamentável. Enviei flores às minhas irmãs mais novas. Nós as três sempre fomos próximas. Quando nos reunimos em casa vemos imagens nossas em tutus de ballet condizentes a dançarmos pela parede fora, as nossas infâncias revividas através dos slides cheios de grão que os nossos pais projetam num lençol pendurado na sala de estar. Em pontas, na récita anual, os braços erguidos, toco nos ombros das minhas irmãs com os dedos, unindo-nos. Tocamo-nos em quase todas as fotografias.

Num flash de luz somos reposicionadas como meninas de escola católica, a descer a rua de mãos dadas. Outro flash e somos ainda mais novas, elas as duas a montarem-me como se eu fosse um cavalo com as suas mãos sapudas agarradas à crina do meu cabelo, os meus caracóis ruivos a contrastarem com o castanho dos cabelos lisos delas.

O cabelo era a nossa principal característica distintiva até eu me ter casado jovem e passado todo o início da minha vida adulta com um homem, enquanto as minhas irmãs amadureciam e chegavam à meia-idade sem laços mas ansiosas por romance.

Enviei flores às minhas irmãs para os locais de trabalho delas. As minhas colegas mais felizardas recebiam frequentemente ramos de flores nos dias de aniversário ou nas datas festivas e eu corava de inveja quando quem passava parava para inalar o aroma da boa sorte delas.

Eu nunca recebia flores. "Demasiado caras", queixava-se o meu marido.

Acomodada há quase uma década numa relação que não era feliz o bastante, lamentava a perda do encantamento que tinha murchado com o passar do tempo. "Vem sentar-te ao pé de mim", tentava eu persuadi-lo do meu lugar no sofá, mas ele sorria e dizia que preferia a sua poltrona no outro lado da sala. Eu ansiava pelo toque. Ansiava pela ligação. Interferia na vida das minhas irmãs porque não havia qualquer interferência na minha.

Mandei as flores com uma nota anónima: "Levas-me à loucura!" Para nós, o anonimato não era uma coisa estranha. Quando vivíamos todos debaixo do mesmo teto metíamos, por vezes, os nomes de todos os membros da família dentro de uma taça de cozinha em metal e depois extraímos o nome do nosso "amigo secreto" para esse mês, alguém para quem faríamos sub-repticiamente pequenos presentes ou esconderíamos mensagens especiais.

Enviei flores às minhas irmãs porque sentia falta de viver uma vida em que o amor me visitasse nessas maneiras românticas. Sentia falta de mensagens de amor piegas e de provas de que eu era importante. Sentia falta da surpresa.

Com uma ingenuidade narcísica imaginava que as vidas livres das minhas irmãs estavam cheias de uma paixão que faltava à minha e fantasiava sobre o que sentiria cada uma delas ao pensar que tinha um admirador secreto - um nervoso na barriga que há muito tinha desaparecido para mim.

Enviei flores às minhas irmãs sem ponderar que o meu presente poderia causar mais dor do que prazer.

As flores seguiram a meio do dia e eu esperei junto ao telefone sabendo que as minhas irmãs iriam ligar uma à outra, descobrir que ambas tinham recebido o mesmo ramo, com a mesma mensagem e perceber que as flores não tinham vindo de um estranho, mas de alguém que as amava de igual forma.

"Sim, fui eu!", dir-lhes-ia quando telefonassem e alegrar-me-ia a partilhar a surpresa delas. Embora as flores não viessem de apaixonados, quem se poderia queixar quando tinham vindo com amor?

Mas uma das minhas irmãs acordou com tosse nessa manhã e ficou em casa, sem saber das flores no local de trabalho. Quando me apercebi do contratempo e lhe liguei para confessar, a minha outra irmã já tinha reunido com as colegas para tentar descobrir potenciais admiradores, tinha telefonado para a florista num esforço infrutífero para desvendar a identidade de quem tinha enviado o ramo e contactado a minha mãe que, sabendo que tinham forçado recentemente a fechadura da porta da minha irmã, concluiu que as flores deveriam ter sido enviadas por um perseguidor.

Ninguém, a não ser eu, associou o presente ao reviver de um velho costume familiar.

A minha primeira reação ao ouvir as hipóteses criminais que elas tinham colocado foi rir-me, mas apenas porque não me apercebi de que há alturas em que pode ser menos doloroso pensar que alguém nos quer fazer mal do que pensar que ninguém repara que nós existimos.

O meu casamento ainda não tinha chegado ao ponto em que o meu marido lavava os pratos dele segurando-os por cima dos meus, esfregando apenas aqueles que tinha usado, ignorando os meus, ignorando-me. Ainda não andava a manhã toda a mandar o meu filho pequeno e o bebé não fazerem barulho, imaginando passatempos silenciosos para que o pai deles pudesse dormir até tarde como estava acostumado, sem ser perturbado pela nossa presença.

Mas a invisibilidade tem um prazo de validade. No nosso último ano juntos eu estava sempre a desafiá-lo, picuinhas, envergonhada com os meus esforços para o provocar. A ira dele assustava-me, mas eu provocava-a na mesma, porque a atenção negativa era melhor do que nenhuma.

"Perseguidor?", perguntei à minha irmã, divertida com a rapidez com que o meu gesto tinha sido mal interpretado e perplexa com a raiva que ela me dirigia. Fiquei ofendida com a sua insistência de que eu a tinha escolhido para gozar com ela, porque eu não fazia a mínima ideia do que era estar sozinha. Ver o mundo, a dois, algures fora do nosso alcance. Querer ser autossuficiente, a sós, e lutar ao mesmo tempo com a realidade solitária de uma cadeira vazia do outro lado da mesa, do jantar de festa para um, do espaço vazio na cama onde o silêncio nos atira: Tu podes ser suficientemente boa para ti própria, mas continuas a não ser suficientemente boa para mais ninguém.

A minha irmã e eu discutimos violentamente por causa das flores. Ela chamou-me cruel e acusou-me de a obrigar a fazer figura de parva diante de toda a gente que conhecia.

"São apenas flores!", insistia eu. "Por que é que não consegues aceitar que, por muito pouco discernimento que tenha tido, só quis fazer alguma coisa que te deixasse feliz?"

"Não são apenas flores!", rebatia ela, afirmando que eram símbolos da minha insensível desconsideração pela sua solidão.

Os auscultadores foram pousados violentamente e a linha entre nós permaneceu desligada durante muito tempo. Não irremediavelmente, mas era muito estranho. Nós éramos aquelas irmãs que, em crianças, tínhamos as nossas próprias palavras secretas com as quais comunicávamos. Como podíamos agora não ter pontos ou linguagem em comum?

Não foi um afastamento, mas uma pausa incomum. Passo a passo, trabalhámos duramente para restabelecer a ligação. Conversas delicadas cheias de palavras sopesadas, sempre alerta com os possíveis equívocos. Visitas curtas com agendas predeterminadas e pedidos sussurrados aos nossos familiares: "Aconteça o que acontecer, não menciones o "Caso das Flores"".

Felizmente, com o tempo, as naturais marés baixas da vida geraram empatia. Ela apaixonou-se e aprendeu que a vida a dois não é pera doce. Eu divorciei-me e senti a dor crua da vulnerabilidade. Nesse processo, mais uma vez ela tornou-se no meu apoio e, quando precisei mais dela, veio a correr e ficou inteira a meu lado. Como eu fiz com ela.

Fiquei ao lado dela no dia do seu casamento.

Nos bancos da igreja todos os membros da família seguravam uma flor, apanhada no jardim de cada um nessa manhã, como símbolo de amor e apoio ao casal. Eu tinha sido encarregada de juntar as flores para que estas fizessem o ramo de noiva da minha irmã no tempo que levaria o solista a executar uma única música.

Com as flores na mão percorri as alas, tão absorvida pelo desafio que não reparei, até ter picado o dedo, que a metade inferior de um pé de rosa estava eriçado com dezenas de espinhos afiados.

Não podia tirá-lo simplesmente; aquele pé representava o amor de alguém. Em vez disso tentei partir a haste ao meio, desesperada para separar o que era belo daquilo que não o era, mas o rebento fibroso limitou-se a dobrar e esfibrar.

Pressionada pelo refrão final da canção fiz a única coisa que podia: virei-me de costas e mordi a haste, parti-a com os dentes e cuspi a ponta agressiva para o chão. Feri o lábio, mas lambi o sangue e dirigi-me ao altar com o ramo de noiva da minha irmã.

Só então percebi que esta era a primeira vez que lhe dava flores desde aquelas que nos tinham separado. Enquanto eu avançava na sua direção ela sorriu com os olhos marejados de lágrimas de felicidade.

Aquilo fez-me recordar as suas lágrimas naquele dia longínquo e as perguntas dela: "Por que mandaste as flores anonimamente e com um enigma? Não podias ter simplesmente mandado as flores com uma mensagem a dizer "Gosto de ti" e assinada?

Poderia, claro. Deveria. Mas onde tinha errado uma vez, emendei finalmente: pus a minha assinatura neste dia.

Voltei para o meu lugar a seu lado e passei-lhe o ramo para a mão, que ela estendeu então ao marido em esperança, alegria e expectativa. Quem pode saber o que acontecerá à união deles? Eu desejo-lhes o "felizes para sempre", mas também sei, por experiência própria, como o amor pode murchar.

Não pude intervir para dar à minha irmã uma coisa que eu não era capaz de criar para mim própria, mas fiz tudo o que pude por ela no dia do seu casamento. Sangrei ao remover as farpas, num esforço para lhe assegurar um início imaculado.

Estas flores não a iriam magoar. Eu tinha tirado os espinhos.

Ellen Urbani é escritora e vive em Portland. O seu primeiro romance, Landfall, será publicado em agosto. Exclusivo DN/The New York Times

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt