Amor com fome não dura

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Diz o ditado venezuelano que "amor com fome não dura". Sábios venezuelanos, não podiam ter feito previsão mais acertada: calamidade social, implosão económica, fim do modelo político. E amor, a existir, só com o original revolucionário, nunca com a cópia. O regime de Maduro nunca aceitou esta evidência. E se não o fez até aqui, atirando sempre as culpas para terceiros, não é agora que o fará. A prova foi o golpe camuflado de eleição que inventou no último domingo, uma fraude pseudolegitimadora de representantes do povo, de uma nova lei fundamental e de um estado de sítio permanente sem fim à vista. Há ditaduras em potência, e até outras instaladas, que pensam que ao realizarem uma eleição se transformam numa democracia ou, simplesmente, que acalmam a "comunidade internacional" interessada. Com ou sem fraude nesta eleição, com maior ou menor adesão às urnas, a sua realização unilateral foi um golpe num qualquer processo de negociação vislumbrado no horizonte, tenha ou não mediação. Maduro escolheu a violência, o cerco, o autoritarismo e a barricada. A partir daqui é difícil que a Venezuela escape a estes três cenários, separados, intercalado ou em simultâneo.

Primeiro, o de uma certa complacência internacional com o statu quo, sem ruturas afirmativas com a corte de Maduro ou isolando-a até quebrar. Por esta ou aquela razão, essa benevolência passará por continuar o processo declaratório de condenação, acolher os que conseguirem sair do país e minimizar, de formas variadas, o sofrimento das populações. Na semana seguinte à constituinte, foi sobretudo este roteiro que se fez notar.

Segundo, o da total anarquia interna pintada a violência extrema. Numa primeira fase, com os meios ao dispor do Estado - forças armadas, polícias, milícias, serviços de informação -, numa posterior com vários setores das oposições de rua armada de outra forma. Digo vários setores das oposições de rua porque me parece que as principais figuras da oposição partidária continuarão a fazer os possíveis, a curto-médio prazo, para evitar resvalar para esse tipo de combate, na esperança que algum fator externo obrigue o regime a negociar uma saída. Mas isto tem um tempo.

E é precisamente neste hiato que muito se pode decidir. Se houver uma violência do regime em escala isso pode motivar deserções internas que não querem pactuar com Maduro. Nas forças armadas, onde o presidente venezuelano nunca colheu unanimidade; entre magistrados (como já está a acontecer), esvaziando de conteúdo legalista o enquadramento golpista em expansão; entre diplomatas (como também já está a acontecer), minando as ligações com o exterior que, com o petróleo em baixa, vão salvando o regime (Cuba e China); no aparato securitário, por uma precariedade comparativa às forças armadas capaz de mobilizar uma insurreição corporativa; e no PSUV, com alguns elementos a tirarem o tapete à medida que se convencem de que o fim chegou. Este quadro, mais plausível do que uma mudança de regime vinda de fora, só é minimizado nos seus efeitos tremendistas se tiver um enquadramento externo propício e uma sensatez mínima entre os intervenientes.

Terceiro, um endurecimento do cerco exterior, com sanções económicas e políticas, cortes no abastecimento básico e nas ligações fronteiriças terrestres e aéreas. Diga-se que Maduro receberia esta estratégia com um grito de felicidade. Por um lado, passaria a ligar a narrativa clássica sobre a existência e a culpa do "inimigo externo" com novos nomes, rostos e factos. Isso agruparia fileiras no aparelho de regime, reforçaria a barricada, na esperança de que a ideia colhesse adeptos fora do círculo de indefetíveis de Maduro. Por outro lado, sanções económicas num país em colapso pode virar o alvo de Maduro para os seus autores, vistos a partir daí não como um auxílio mas como sádicos promotores do sofrimento popular. Em tese, as sanções fazem sentido se forem cirúrgicas, limitadas no tempo e acompanhadas de outros instrumentos concertados para forçar o regime a ceder, sem no entanto inviabilizar as pontes necessárias para um quadro de transição pactada. Só que, na prática, o que temos visto na grelha de sanções contemporâneas são os seus limites em alterar estruturalmente o statu quo (Rússia, Ucrânia, Irão, Coreia do Norte, etc.).

É por isso que a posição de Lisboa foi sensata, quero crer por ter feito uma leitura semelhante e não por resquícios de solidariedades com o regime. Mas isso não significa que não pudesse fazer muito mais em relação aos presos políticos, alguns deles portugueses, ou ser mais ativo numa solução de mediação conjunta com outros Estados e organizações ou, mesmo, envolvendo diretamente o secretário-geral da ONU.

A mediação é um instrumento relevante, mas não pode ser protagonizada por Espanha, nem a reboque da caótica administração Trump. Regionalizar a solução pode ser o mais realista, tendo em conta a decadência dos apoios do regime, o isolamento dos que restam e a proximidade identitária que existe com vários setores da sociedade. O fator decisivo será, sem dúvida, a posição de Cuba e, num segundo plano, da China. A decisão de Trump em inverter o recente acolhimento internacional empurra Havana para a fidelidade com Caracas, ajudando Maduro a manter-se. Neste quadro trumpista, só sinais evidentes de rutura interna no regime venezuelano é que poderão flexibilizar a posição de Cuba. Regimes ditatoriais devem quase tudo às solidariedades exteriores, mas as transições para a democracia precisam sobretudo de impulsos internos capazes e estruturados. É por aqui.

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