Amor, morte e ressurreição pela Juvenil Gustav Mahler

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Deixou marcas muito brilhantes a passagem da Orquestra Juvenil Gustav Mahler (OJGM) por Lisboa. Não pudemos assistir ao primeiro concerto, mas estivemos nos outros dois, de que aqui daremos conta.

Primeiramente, falaremos do concerto em que Leo McFall dirigiu a OJGM em obras de Sergei Prokófiev e Bela Bartók, concretamente a súmula realizada pelo próprio maestro das suites I e II (op. 64) extraídas da música de bailado para o Romeu e Julieta, do autor russo; e a ópera em um ato raramente ouvida entre nós O castelo do Barba-Azul (de 1911, estreada em 1918), do compositor húngaro.

A OJGM esteve em esplêndida forma de uma ponta à outra do concerto, com uma sonoridade que fundiu de forma algo surpreendente o chamado "som americano" com o designado "som centro-europeu". De tal forma que poderá mesmo ter inebriado o maestro Leo McFall na sua leitura do Barba-Azul - no que será a nossa única reserva à magnificência deste concerto: de facto, deu a impressão de que McFall se impressionou ele próprio, de certa forma, e se deixou "embalar" nas luxuriantes sonoridades que invariavelmente provinham da OJGM (mas também, não o subestimemos, da voz do soprano russo Elena Jidkova!), obnubilando com isso a coloração dramática progressivamente inelutável que deverá ser a da obra!

Jidkova, meio-soprano com squillo, mas sobretudo com um centro timbricamente muito belo, transições dúcteis e agudos de cintilação e irradiação muito particulares, como que transfigurando a "sua" Judite. Já o baixo Gabor Bretz incorporou na perfeição o papel do sombrio, misterioso e funesto Barba-Azul e a sua voz e a forma como a moldou souberam dar corpo aos três adjetivos que acabámos de empregar. No prólogo recitado, Sofia Sá da Bandeira soube unir discrição e suspense.

Antes, no Prokófiev, ouviu-se uma muito convincente suite em cinco números "by" Leo McFall da música do Romeu e Julieta. McFall juntou os números I e II da Suite n.º 2 (posições homólogas na sua suite), fê-los suceder do par final de números da Suite n.º 1 (os seus n.º 3 e n.º 4), concluindo com o número conclusivo da Suite n.º 2. O resultado é dramaturgica e musicalmente convincente, com progressões internas e um arco geral muito interessante e, em simultâneo, emprestando umas "vestes" de certo modo sinfónicas (género sinfonia) ao todo resultante. E foi servido, McFall, por uma OJGM absolutamente impecável em todos os parâmetros que queiramos considerar!

A coroar a presença entre nós da OJGM e simultaneamente inaugurando a digressão que estão por estes dias a empreender, ouvimos a Sinfonia n.º 2 em dó m/mib M, de Gustav Mahler, na direção de Jonathan Nott e com a presença como solistas do contralto alemão Christa Mayer e do soprano israelita Chen Reiss, a par da contribuição do Coro Gulbenkian.

Jonathan Nott tem um estilo de regência muito peculiar (e que não prima pela elegância...), mas não lhe negamos ênfase nem eficácia. E ele também não as negou ao longo da sua leitura desta longa obra. E depois, refira-se que ele dirigiu a obra - uma obra destas! - de cor!

O principal óbice da leitura de Nott prendeu-se, na nossa perceção, com o paralelismo que ele quis estabelecer entre o I (o ex-Totenfeier) e o V (o andamento coral da Ressurreição) andamentos ao nível do gesto e da retórica, com isso desenhando o "grande arco" discursivo da sua conceção. Apesar de, tal como na Nona de Beethoven, Mahler reconvocar no Finale momentos do I (e de outros) andamentos, isso parece-nos algo abusivo e forçado, porquanto a natureza, teleologia, essência e a própria cronologia (tempo histórico e tempo biográfico em que foram compostos) dos andamentos difere substancialmente. E com isso "sofreu" mais, logicamente, o andamento inicial, que se viu assim tingido de uma aparêcia teatral, espalhafatosa, artificial. Por contraste, gostámos muito da leitura "ao pé da letra" que Nott fez dos andamentos II e III e da conceção dramatúrgica, em estádios sucessivos, que presidiu à sua leitura do V andamento.

Gostámos muito das solistas: Christa Meyer é um verdadeiro contralto e soube dar ao Urlicht aquele tom, misto de espiritual e de pueril fervor, que o atravessa; já Chen Reiss possui uma belíssima voz, de um timbre puro, sedoso e luminoso, e subtil nas gradações e perpassado de uma emoção que ela nem sempre conteve - foi na verdade tocante observar como Reiss se comoveu profundamente com a obra, ali em direto, a ponto de lhe ser difícil conter a emoção nos momentos em que não cantava/participava (onde se abstraía)! E, depois, a junção em palco de uma israelita e uma alemã (em Mahler!) não deixa de ter ressonâncias simbólicas profundas...

Em termos puramente performativos, a OJGM não esteve neste concerto ao nível superlativo a que a ouvíramos dias antes, designadamente na coesão dos violinos I, nas trompas (emissão/intonação) e na harpa (intonação). O Coro Gulbenkian (percetivelmente bem trabalhado) esteve a um nível muito alto.

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