O fascínio pelos animais começou na infância por causa da série americana Daktari. Baseada na história de Toni Harthoorn e da mulher que criaram um refúgio para animais no Quénia, a série conta a história do Dr. Tracy, um veterinário que vive na selva africana e ajuda animais domésticos e selvagens. "Nunca pensei ser um veterinário assim, viajar pelo mundo e tratar animais selvagens. Era um sonho e aconteceu passados muitos anos", conta Amir Khalil..Terminado o curso de Medicina Veterinária no Egito, Amir decide emigrar para a Áustria com o objetivo de complementar os estudos com enfoque na área dos animais selvagens. Corria o ano de 1994 e o jovem veterinário decide tornar-se voluntário numa pequena (na altura) organização não governamental, a Four Paws. Ao serviço desta ONG viajou para a Roménia a fim de cumprir a primeira missão: esterilizar cães e gatos. Durante quatro anos trabalhou de graça para a Four Paws até que, em 1997, regressa a Viena para partir com destino à Bulgária, agora sim para trabalhar com animais selvagens..Treinar ursos para dançar era uma atividade rentável e popular na Idade Média, uma forma de entretenimento violenta e cruel que tem vindo a desaparecer. Em 1997, Amir Khalil recebe um pedido de ajuda para resgatar três ursos "bailarinos". Já na Bulgária, o veterinário encontra muito mais do que três animais a precisar de auxílio. Era preciso encontrar uma solução e construir um santuário onde os ursos resgatados pudessem ser recuperados e tivessem uma vida mais tranquila. Uma tarefa que ultrapassava em muito as funções de um médico veterinário. Grande parte destes ursos pertenciam a comunidades ciganas e foi preciso negociar para que entregassem os animais. Apesar de não o saberem, Amir compreendia romani, aprendido durante os anos passados na Roménia a esterilizar gatos e cães, e isso possibilitou-lhe conhecer as tradições e os medos da comunidade. As pessoas de etnia cigana eram malvistas pelas pessoas em geral, tinham fama de roubar e eram muito desconfiadas. Comunidades pobres onde um urso "bailarino" servia de sustento a mais de vinte pessoas. Apesar de ser uma tradição cultural, este tipo de entretenimento era já ilegal. Era necessário criar outras oportunidades de sustento para estas pessoas para que não voltassem a explorar animais selvagens. "Começámos a negociar com o governo para nos dar um terreno para construir o santuário, compensámos os donos dos animais e conseguimos salvar 27 ursos. Foram oito anos de trabalho, uma grande aprendizagem" afirma Amir Khalil. "Ser gentil para os animais mas também para as pessoas foi fundamental. O objetivo é retirar os animais sem ofender os humanos." Como confessa o veterinário, "no meu trabalho tenho de ser diplomata, líder, gestor de projetos e, por vezes , duro e até bandido. Muitas vezes estou a lidar com pessoas más"..Quando começa uma guerra todas as pessoas tentam fugir. Animais em cativeiro como leões, ursos e outros animais selvagens são deixados para trás. A fome e as explosões colocam a vida destes animais em risco e quase ninguém se preocupa a não ser Amir Khalil que está a fazer tudo por tudo para entrar na zona em conflito..Quando perguntamos ao veterinário qual terá sido, até ao momento, a missão mais difícil, a resposta é rápida: Kosovo. "Estava no início da minha carreira, não estava bem treinado", conta o veterinário. Os meios de comunicação diziam que a situação estava controlada mas a realidade que Amir encontrou era bem diferente. "Pela primeira vez na minha vida vi tiroteios e pessoas baleadas.".Tudo começou com uma série de denúncias que relatavam a morte repentina de animais pouco depois de começaram a sangrar da boca. A Four Paws International resolveu investigar e também oferecer apoio veterinário às pessoas que tinham animais. Na altura suspeitava-se de que os bombardeamentos e os mísseis estariam a libertar para a atmosfera esporos de antraz, uma bactéria perigosa que pode viver no solo até 70 anos..Depois de ter entrado no Kosovo via Macedónia, Amir e um colega também veterinário dirigiram-se ao aeroporto de Pristina para verificar a estação veterinária. Pelo caminho viram um trator e uma pessoa baleada no chão. Viram também muitos militares. E começou um tiroteio. Os veterinários levavam uma câmara de vídeo e resolveram começar a filmar. De repente, Amir sentiu algo frio encostado à sua cabeça. Um homem tinha conseguido aproximar-se se do carro onde estavam os dois veterinários, sem que se apercebessem. "Foi uma experiência muito dura. Ele olhou-me nos olhos, pareceu-me uma eternidade, e disse vídeo! Não conseguia falar, não conseguia mexer-me. Entreguei a câmara e, no final do dia, ele deixou -nos ir." Amir telefonou de imediato ao chefe que estava em Viena e foi-lhe ordenado que regressasse o mais depressa possível. Depois de pagar uma quantia avultada de dinheiro, o veterinário conseguiu transporte que o deixou a 15 quilómetros da fronteira com a Macedónia. Uma distância que percorreu a pé, na escuridão total, totalmente dominado pelo medo. "A cooperação é muito importante neste tipo de missões. Não podemos ser cowboys que vão salvar animais. É fundamental preparar e organizar o trabalho. Para ajudar animais em zonas de conflito temos de ter uma equipa bem treinada. A segurança vem primeiro, para as pessoas e para os animais.".Em 2003, o veterinário volta a partir. Desta vez o destino é a capital do Iraque, Bagdade, e o objetivo era tentar salvar os animais do jardim zoológico da cidade. Dos 720 que lá viviam, só 28 sobreviveram e precisavam de ajuda. Quando Amir chegou à cidade, Saddam Hussein tinha fugido mas no palácio tinha deixado nove leões. A missão foi fácil, como conta o veterinário: "Organizei toda a logística a partir da Jordânia. Na fronteira estavam militares americanos e não havia muito controlo." O veterinário e a equipa conseguiram resgatar todos os animais que tinham conseguido sobreviver..A equipa haveria de regressar ao Iraque mas desta vez o destino era a terceira maior cidade do país..Em 2017, Mossul era uma cidade dividida. Parte já havia sido libertada do ISIS mas a organização ainda dominava partes da cidade e os atiradores estavam por todo o lado..À sede da Four Paws em Viena tinham chegado, via Facebook, pedidos de ajuda de pessoas que viviam perto do Jardim Zoológico de Mossul e que não sabiam como alimentar um leão e um urso, os únicos animais que tinham conseguido sobreviver. "Era uma situação muito complicada. Os animais estavam em muito más condições. Os ataques aéreos, os mísseis, tinham matado os outros animais. O ISIS não queria saber deles. As pessoas tentavam ajudar mas eram muito pobres e sobreviviam com muita dificuldade.".Amir Khalil e a equipa conseguiram uma autorização especial para entrar no país através do Curdistão. "Foi uma missão uma pouco louca", confessa o veterinário, pois "seriam cerca de três mil os atiradores do ISIS espalhados pelas ruas". Assim que chegou, a prioridade foi examinar os animais e confirmar o pior cenário. "Dei por mim a dizer aos animais que, para os ajudar, eles tinham de me ajudar, sobrevivendo. Lembro-me de que estava a preparar-me para disparar um dardo tranquilizante para examinar um dos animais em segurança, quando ouvi uma explosão. Um carro tinha acabado de explodir ali perto." Amir Khalil precisava de um plano que incluísse meios de transporte, caixas de transporte para acomodar o leão e o urso e também garantir a cooperação do exército. E assim decidiu voltar a Viena, uma das decisões mais difíceis da sua vida. Depois de tudo organizado Amir voltou ao zoo e resgatou os animais mas estava muito enganado se pensou que a parte mais difícil já estava ultrapassada. Quando chegou à fronteira, a equipa foi mandada para trás. Nenhum animal podia sair do país. Tinham toda a documentação mas o leão e o urso não podiam sair. Precisavam de uma security clearence, ou seja era necessário provar que os animais não eram terroristas..Durante nove dias Amir, a equipa e os animais ficaram retidos na fronteira. Amir chegou mesmo a ser detido. "No início os soldados achavam graça. Nunca tinham visto estes animais e perguntavam "Porquê ajudar os animais quando há pessoas a morrer?"", conta o veterinário, "e depois começaram a trazer comida para o leão e para o urso. Crianças que estavam a perder tudo, a família, a sua casa, vinham ver os animais e sorriam." E o inimaginável aconteceu. Um leão e um urso pararam a guerra durante dois dias. "Os animais criam ligações entre as pessoas. Numa guerra os humanos não comunicam ou comunicam através das armas mas, por vezes, os animais conseguem construir pontes entre as várias nações. Ali a guerra parou porque as pessoas assim o quiseram e nós pudemos fugir e resgatar os animais. O mesmo aconteceu em Aleppo, na Síria, e na Faixa de Gaza. As pessoas pousaram as armas para carregar as caixas dos animais", conta Amir Khalil. Em Gaza, a Four Paws International já esteve oito vezes, conseguiu fechar cinco zoos e resgatou 47 animais..Em 2017 Amir a sua equipa viajaram até Aleppo. Dos 615 animais do zoo, apenas sobreviveram 13: leões, ursos, tigres, hienas e dois cães. Apesar de tudo fechado e da confusão dos combates, conseguiram levar os animais até à fronteira turca..Quando perguntamos ao veterinário qual é a arma secreta para que as pessoas acreditem que ele e a sua equipa só lá estão por causa dos animais, a resposta é: "Porque é a verdade! No início ninguém acreditava em nós mas fui-me tornando no veterinário de guerra e as pessoas começaram a conhecer o meu trabalho. O nosso trabalho mostra alguma humanidade numa zona em conflito.".Mas o trabalho de Amir Khalil não acaba quando não está em zonas de conflito. "Gosto de missões impossíveis", confessa o veterinário. "A primeira vez que vi lágrimas nos olhos de um animal foi no Kaavan." Amir conheceu aquele que é conhecido como o elefante mais solitário do mundo em 2016 quando visitou o Jardim Zoológico de Islamabad, no Paquistão. Na altura o zoo tinha 916 animais mas suas instalações mas não tinha uma gestão cuidada nem equipamento médico ou medicamentos. Uma situação difícil que, apesar do relatório enviado ao governo, não se alterou. Quatro anos depois, em 2020, nada havia mudado e muitos animais tinham morrido. Não restou alternativa ao supremo tribunal senão ordenar a retirada dos animais. Assim, em agosto do ano passado, Amir e a sua equipa regressaram ao Paquistão.."Kaavan tinha perdido muito peso. Estava agressivo. Vivia acorrentado. Ninguém se aproximava pois o animal já tinha matado duas pessoas. Apenas deixavam comida e fugiam." Para melhorar a sua condição e preparar o resgate do animal, Amir atraía o elefante para um local e dava-lhe de comer. Todos os dias o veterinário passava quatro horas de manhã e quatro horas à tarde com Kaavan. Era habitual falar com o animal mas um dia decidiu cantar uma das canções preferidas (que até faz parte de um ritual!): My Way, de Frank Sinatra, e reparou que o elefante começou a prestar atenção. Finalmente, Amir conseguiu estabelecer uma ligação com Kaavan! A partir desse momento, o elefante parecia ficar à espera de que veterinário aparecesse. "Foi uma logística difícil. Era preciso treinar o animal para que ficasse tranquilo durante a viagem de avião até ao Camboja, onde vive agora num santuário. Falei e cantei para ele durante toda a viagem." Uma viagem financiada, em parte, pela cantora Cher..Mas houve mais missões no ano passado. O veterinário esteve em Beirute, após a explosão que arrasou uma boa parte da cidade, a tratar animais feridos. Na Tailândia ajudou a alimentar cerca de cem elefantes pois, por causa da pandemia, não há turistas e as pessoas e os animais estão a atravessar uma fase difícil. O trabalho não para! A Four Paws International recebe pedidos de ajuda todos os dias.."Sou cristão. Jesus não nasceu num palácio. Quando fazemos o presépio colocamos as figuras de Maria, José , Jesus, o burro e a vaca. Os animais fazem parte da nossa vida", confessa Amir Khalil. Muitas organizações ajudam as pessoas, o veterinário acredita que completa esse trabalho ajudando os animais. "É muito triste ver pessoas a sofrer. Quando vamos ajudar os animais, ajudamos também as pessoas. Damos trabalho, compramos alimentos a fornecedores locais. Levamos medicação." Para Amir a vida é feita de coisas simples e há um ritual que não dispensa depois de cumprida uma missão: fumar um cigarro, beber um uísque e cantar My Way, o que por vezes provoca alguns conflitos com a equipa pois o único fã dos dotes vocais do veterinário é Kaavan, o elefante que deixou de ser o mais solitário do mundo.