Ambientalistas recuperam estudo ambiental para contrariar opção de Alcochete para o novo aeroporto
"Não há bela sem senão" é um provérbio que assenta que nem uma luva à eterna discussão sobre a localização do novo aeroporto de Lisboa, que teima em não sair do papel. Em estudo, desde abril, estão nove opções para a instalação da infraestrutura que há décadas é pedida pelo poder político e pelos agentes económicos, mas há uma que está a levantar preocupação: a do Campo de Tiro de Alcochete (CTA). Ambientalistas recuperaram um estudo de impacto ambiental de dezembro de 2010 para alertar para os danos ambientais desta opção, que, caso seja a escolhida pelo próximo Governo, poderá significar o abate de 250 mil sobreiros, uma espécie protegida pela legislação nacional e com elevada importância para o ecossistema natural. "É distintamente um impacto brutal", considera o presidente do GEOTA - Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente.
A discussão foi recuperada na sequência de uma notícia avançada pela TVI, em outubro, sobre os passos necessários para preparar o terreno do CTA para albergar a infraestrutura, nomeadamente o abate de centenas de milhar de sobreiros. De acordo com os documentos a que o DN teve acesso, só a construção do aeroporto implicaria matar 90 mil árvores, a que se juntam ainda 166 mil sobreiros ameaçados pela implantação da cidade aeroportuária e dos acessos rodoviários.
A líder do PAN, Inês Sousa Real, reagiu publicamente dizendo que podemos estar perante um "desastre ambiental" e considerou "absolutamente inaceitável que se penhore desta forma um património natural como este". "É fundamental garantir que o desenvolvimento do país não é feito à conta dos sacrifícios ambientais. Sabemos que o país precisa de uma nova solução aeroportuária, mas não à custa do abate de 250 mil sobreiros", reforçou a deputada.
Caso a solução de Alcochete venha a ser a opção recomendada pela Comissão Técnica Independente (CTI), que está a analisar as diferentes possibilidades desde outubro de 2022 (ver a próxima página), o abate do ecossistema de montado naquela área seria uma medida sem precedentes. Aliás, para se ter uma ideia da dimensão do que os ambientalistas consideram ser um problema, nos últimos 13 anos foi autorizado em Portugal o abate de cerca de 35 mil sobreiros - são sete vezes menos do que o previsto no estudo de impacto ambiental de 2010.
Contactado pelo DN, o professor catedrático Filipe Duarte Santos considera que, tal como as outras oito localizações em cima da mesa, Alcochete "tem aspetos mais positivos e menos positivos", mas reconhece que "ser uma zona em que existe montado é um aspeto negativo". O também presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS) lembra, porém, que é preciso aguardar pelo relatório da CTI e pela discussão pública que se seguirá. "É muito importante separarmos aquilo que é um aconselhamento baseado na ciência daquilo que são decisões políticas. Haverá um governo que irá decidir depois. A ponderação dos vários critérios é uma questão política", assinala.
Catarina Grilo, diretora de Conservação e Políticas da ANP/WWF, diz que a associação aguarda "com serenidade e expectativa" a apresentação do relatório final da CTI, a 5 de dezembro. No entanto, sublinha que "deve-se ter sempre em conta o quadro geral das alternativas de localização em cima da mesa e uma panóplia de critérios para considerar que determinadas opções de localização são aceitáveis ou não".
Mas não são apenas os ambientalistas a mostrar reticências sobre este cenário. Pedro Nuno Santos, então ministro das Infraestruturas e agora na corrida à liderança do PS, disse na Assembleia da República, em março de 2021, que a opção do CTA iria "arrasar mil hectares de sobreiros".
O DN contactou o Ministério do Ambiente e da Ação Climática para questionar se o organismo estaria disponível para autorizar o abate de 250 mil sobreiros, caso Alcochete fosse a opção escolhida pelo Governo. "A Comissão Técnica Independente foi escolhida para desempenhar uma missão e não faremos qualquer comentário até esse trabalho estar concluído", respondeu a equipa de comunicação do ministério.
Para o presidente do GEOTA, João Joanaz de Melo, a discussão em torno do novo aeroporto de Lisboa está inquinada desde o início. "Antes de discutir as localizações, há coisas que devemos fazer. E uma delas é ter uma rede intercidades ferroviária em condições que ligue as principais cidades, portos e aeroportos do país", defende o também investigador, que mostra dúvidas sobre a necessidade de uma nova infraestrutura aeroportuária.
A prioridade, acredita, deve ser "reduzir a carga na Portela", "acabar com as rotas noturnas e utilizar aeroportos complementares" como o de Beja, uma solução também defendida pela líder do PAN. A organização não-governamental representada por João Joanaz de Melo recusa ainda a ideia de transformar o novo aeroporto "num grande hub internacional" e sublinha ter "as maiores dúvidas de que isso seja do interesse do país como modelo de desenvolvimento".
De facto, a questão da sobrecarga do Aeroporto Humberto Delgado, na Portela, foi já abordada pela CTI, que recomendou que as operações fossem otimizadas e que as pistas de Beja fossem usadas como complemento à atual oferta disponível. Independentemente da solução que vier a ser recomendada pela CTI, o GEOTA diz que devem ser considerados os critérios ambientais. "Um fator importante é não interferir com áreas protegidas naturais", reforça o presidente da ONG.
Contactada pelo DN, a associação Zero prefere não se pronunciar, para já, sobre as hipóteses em cima da mesa para a construção do novo aeroporto e remete uma posição para quando for divulgado o relatório final da CTI. Porém, sobre a importância do sobreiro como agente do ecossistema natural, Paulo Lucas, membro da direção da ZERO, chama à atenção que estas árvores "são importantes para a preservação da biodiversidade". "Até do ponto de vista do fornecimento de serviços de ecossistema, esta é uma espécie que permite a regulação do ciclo de nutrientes e a regulação hidrológica", explica. A opinião é partilhada por Catarina Grilo, que acrescenta ainda que "a eliminação destas árvores terá impacto também em termos de sequestro de carbono", mas assinala que é possível "reconstruir" um montado, ainda que seja um processo "complexo".
João Joanaz de Melo acrescenta que o ecossistema montado tem um "enorme valor de conservação", mas também aspetos económicos e sociais que não devem ser desconsiderados, nomeadamente os postos de trabalho associados à retirada da cortiça e a própria riqueza que este material gera aos seus proprietários. "O problema não é o abate de uma árvore, duas árvores ou meia dúzia delas. Se destruirmos um ecossistema, ele pode levar muitas dezenas ou até centenas de anos a recuperar", afiança.
A escolha da localização para o novo aeroporto de Lisboa tem sido marcada por avanços e recuos nas últimas cinco décadas, sem que daí resultasse uma decisão final. No ano passado, o então ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, anunciava a construção imediata do aeroporto complementar do Montijo e o início dos trabalhos em Alcochete. "Já chega, já chega! O país anda há anos a discutir o aeroporto. Já é tempo a mais. Há uma decisão tomada e vamos avançar", dizia à RTP.
O resto da história é conhecida: o primeiro-ministro ordenou, já depois do anúncio, a revogação do despacho assinado por Pedro Nuno Santos, que acabou a desculpar-se numa conferência de imprensa em que reconheceu "erros de comunicação" no governo. António Costa não exigiu a demissão do ministro, mas reconheceu que "foi cometido um erro" e que esse estaria "corrigido" com a revogação do despacho.
No final de 2022, o Governo criou a Comissão Técnica Independente (CTI), liderada por Rosário Partidário, a quem cabe agora a responsabilidade de analisar todas as opções consideradas viáveis para a escolha de uma nova localização. Já em abril deste ano, o grupo de trabalho confirmou publicamente estarem a ser estudadas nove localizações possíveis: Aeroporto Humberto Delgado + Montijo, Montijo + Aeroporto Humberto Delgado, Alcochete, Aeroporto Humberto Delgado + Santarém, Santarém, Aeroporto Humberto Delgado+ Alcochete, Pegões, Aeroporto Humberto Delgado + Pegões e Rio Frio + Poceirão. Estas foram as opções que restaram do primeiro lote de 17 que tinham sido consideradas no início do processo. O relatório final será apresentado na próxima terça-feira, 5 de dezembro, com as vantagens e desvantagem de cada solução.
O presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, tem pedido "rapidez" na decisão sobre a localização do novo aeroporto, mas, mais recentemente, em entrevista dada à SIC Notícias, o autarca recusou a ideia de que a infraestrutura não seja construída em Lisboa. "Quero que o novo aeroporto seja na região de Lisboa, com um hub aqui. Vendas Novas ou Alcochete? Não me posso posicionar sem ter estudado os projetos. Mas acho calamitoso que não sejam feitas obras no Aeroporto da Portela", declarou.
O agora ex-ministro das Infraestruturas, João Galamba, disse, no seu discurso de encerramento do debate parlamentar sobre a proposta do Orçamento do Estado para 2024, que a decisão será tomada "ao fim de 50 anos de indecisão". "Além das obras ferroviárias e do planeamento dos investimentos portuários, temos e teremos em curso melhorias no Aeroporto Humberto Delgado e tomaremos uma decisão que tem estado indefinida há mais de 50 anos. Sim, decidiremos mesmo a localização do novo aeroporto", garantiu João Galamba. A decisão já não será, porém, tomada pelo executivo de António Costa.
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