Amarelo. A cor da pátria, da seleção... e dos apoiantes de Bolsonaro divide os progressistas do Brasil

Grupo de cidadãos pede mudança na cor da camisa da seleção nacional, conotada com os manifestantes pró-Bolsonaro. Mas o maior jornal do país lança campanha para associar o tom "canarinho" à democracia
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Nas manifestações a favor de Jair Bolsonaro que se vêm repetindo ao longo de 2020 não é só a tradicional ausência de máscara no rosto do hoje contaminado com covid-19 presidente da República que chama a atenção. Nem apenas as palavras de ordem contra os outros poderes da República, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal [STF], e a favor de uma intervenção militar e do regresso da ditadura. É a cor dos protestos: quase todos os bolsonaristas convictos usam as camisas amarelas, bem amarelas, da seleção brasileira de futebol, para reivindicar valores nacionalistas e o patrióticos, fator relevante no discurso do líder de extrema-direita.

Esse facto vem incomodando os cerca de 70% de brasileiros - de acordo com as sondagens mais recentes -que não apoiam o presidente. O incómodo, entretanto, resultou em duas atitudes antagónicas.

"A camisa amarela, de que me orgulhava tanto de usar no Brasil e no estrangeiro, agora dá-me vergonha", desabafa ao DN João Carlos Assumpção, jornalista e escritor que teve a ideia de lançar um movimento para devolver a cor branca às camisas da orgulhosa seleção pentacampeã mundial de futebol.

"Eu, como muitos amigos meus, já não saio com ela à rua porque ela ganhou uma conotação de apoio à tortura, uma conotação má, negativa, mais ainda nesta pandemia, quando o Brasil está largado, sem ministro da saúde há dois meses e sob políticas retrogradas e fascistas", prossegue.

"Desde 2016, ano do impeachment de Dilma Rousseff, para cá, as camisas amarelas da seleção acabaram apossadas por um grupo que as usava para pedir a queda da presidente e o fim da corrupção", recorda. "O que eu já achava esquisito porque a camisa tem o emblema da Confederação Brasileira de Futebol [CBF], um organismo dirigido nos últimos anos por Ricardo Teixeira, José Maria Marin e Marco Polo Del Nero, todos suspeitos, presos ou banidos do futebol precisamente por corrupção".

"Mas a partir da eleição de 2018, a camisa da seleção é usada por movimentos muito perigosos a favor do regresso da ditadura, pelos fechos do Congresso e do STF, contra a democracia", destaca. "Esses movimentos não me representam, não representam dois terços da população".

"O branco", defende Assumpção, com a autoridade de ter co-escrito "Deuses da Bola", livro sobre a seleção brasileira de futebol e os contextos político, económico e cultural do país, "é tão legítimo como o amarelo". "O Brasil jogou de branco até perder para o Uruguai, no Mundial de 1950 [fez no último dia 16, 70 anos], e a cor passou a ser conotada com o azar, mas na final do Mundial-1958, como a Suécia, dona da casa, usou o seu tradicional amarelo, o Brasil foi campeão de azul".

Em vez do amarelo, que fez os jogadores da seleção serem chamados de "canarinhos", o jornalista prefere então "o branco, cor da paz" ou "o azul, cor da serenidade".

João Carlos Assumpção, que além de fervoroso adepto da seleção do seu país torce pela tradicionalíssima Portuguesa dos Desportos, clube ligado à colónia emigrante lusitana da cidade de São Paulo, defendeu a sua ideia no blogue do portal UOL de Juca Kfouri, outro conhecido jornalista da área de desporto no Brasil.

Sucede que Kfouri, embora partilhe as críticas de Assumpção ao presidente da República e aos seus apoiantes, diverge da questão da mudança cromática. "Não permiti que a ditadura brasileira roubasse de mim o que tenho de mais íntimo, a paixão pelo futebol, a emoção de ouvir o hino, as cores da minha bandeira. Não será um bufão fascistóide como Bolsonaro que conseguirá. A seleção é do Brasil e não de nenhum governante", disse ao DN.

Em 1970, único dos cinco títulos mundiais brasileiros conquistado sob a ditadura militar, o regime, então no auge da repessão e do controle dos media, tentou apropriar-se do triunfo de Pelé, Rivellino, Jairzinho, Tostão e companhia.

A posição de Kfouri encontra eco na do jornal Folha de S. Paulo. O gigante de comunicação, principal alvo, a par do Grupo Globo, das críticas de Jair Bolsonaro e dos seus apoiantes, iniciou uma campanha a favor da democracia cuja cor é... o amarelo.

A cor da democracia

No último domingo de junho, a Folha escreveu em editorial que a democracia brasileira vive, sob Bolsonaro, o maior "teste de stress desde a redemocratização em 1985". Dessa forma, mudou o lema do cabeçalho - em vez de "um jornal a serviço do Brasil" passou a usar "um jornal a serviço da democracia" -, passou a oferecer um curso online sobre o impacto político, económico, social e cultural da ditadura militar no país [período de 1964 a 1985] dedicado sobretudo às populações mais jovens que não viveram o período e, para finalizar, pede aos leitores para "vestir amarelo, a cor da democracia".

"O amarelo não pertence nem aos conservadores nem aos progressistas, deve ser a cor da democracia", defendeu o diretor de redação Sérgio Dávila.

Assumpção entende o argumento mas discorda: "Compreendo a opinião de quem diz que não devemos deixar que se apropriem das nossas cores mas se você vir um grupo vestido de amarelo na rua vai estar sempre identificado com o governo Bolsonaro, não adianta".

"Terei, eu e outros amigos, um trabalho difícil, de formiga, de convencimento persistente, para fazer a ideia da troca da cor vingar daqui em diante", admite.

Contactada pelo DN, a CBF não se pronunciou sobre o movimento até à publicação da reportagem.

Mas, curiosamente, durante a Copa América do ano passado, jogada no Brasil, voltou a usar a aposentada camisa branca, em homenagem à vitória noutra edição da competição, a de 1919, cem anos antes. E ganhou o jogo, à Bolívia, por 3-0 (com golos de Philippe Coutinho, dois, e Everton Cebolinha) e a prova, semanas depois, já vestida de amarelo.

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