Amanhã anda à roda

A lotaria foi rainha quando praticamente não havia outro jogo em Portugal. Hoje, são os mais velhos que ainda não dispensam comprar uma cautela e com números fixos, para "dar sorte". Em especial a do Natal, que representa 20% das receitas anuais da Clássica. Cantada pelos pregoeiros e, desde o ano passado, com uma coreografia e ensaios prévios. <br />
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Ensaiam-se as vozes na sala de extracção da Lotaria. "Zero! Um! Dois! Três! Quatro! Cinco! Seis! Sete! Oito! Nove." Soletram as dezenas de milhares, os milhares, as centenas, as dezenas e as unidades. Um sexto elemento apregoa o prémio e um quinto canta a combinação premiada. Instrumentos de uma orquestra, com lugares e funções específicas. Volta a "andar à roda" amanhã, às 12.30. E, porque é Natal, com coreografia e transmissão na RTP. Nove milhões de euros: 1.º prémio! O maior de sempre.

Desliguem os telemóveis! O oitavo pregoeiro anda pela sala com o "cabo de comando", que entrega ao público na plateia para carregar e parar as bolas numeradas introduzidas nas esferas. É o "pregão de comando". Os outros cantam o "pregão de números" (cinco), o "pregão total" e o "pregão de prémios". Amanhã esperam aplausos do público, como no ano passado, a primeira vez em que houve coreografia extra. E, por momentos, sentirem o mesmo entusiasmo dos anos 80, quando o Totobola não oferecia concorrência e não havia outros jogos. E, se recuarmos mais, há fotos da aglomeração de pessoas no Largo da Trindade, frente à Santa Casa da Misericórdia em Lisboa, à espera dos "números da sorte". O Totoloto, introduzido em 1985, fez a primeira mossa e o Euromilhões, a partir de 2004, um rude golpe. Hoje, existem as lotarias Clássica, Popular e a Instantânea (raspadinha), as Apostas Mútuas (Totobola, Totoloto, Euromilhões, Loto 2). E "não há dinheiro que chegue".

Tenta-se recuperar algum do glamour perdido, aumentando o valor dos prémios com a redução dos impostos e a introdução de mais fracções. E manter os 15 euros por cada uma das 50 fracções por número na Lotaria Clássica deste Natal. Concurso especial daquela que é a líder de mercado, representando 20% das receitas anuais da Lotaria Clássica e que é quase vendida na totalidade, garantem os responsáveis pelo Departamento de Jogos. Nas outras lotarias, vendem metade das emissões, mas a percentagem já andou pelos 40%. Arriscaram neste Natal ao emitir 7500 bilhetes, esperando que compense.

Não há jovens a comprar a Lotaria. O público alvo são homens, com mais de 35 anos e das classes média e alta. As mulheres compram a raspadinha. Nada que se compare com a equivalente espanhola, o El Gordo, cujo êxito atravessa gerações. "Não há comparação possível, a população espanhola é quatro vezes mais. São emitidos muito mais bilhetes e os valores dos prémios são muito maiores", diz Vítor Coelho, responsável pela Lotaria Nacional.

Em Portugal, os resistentes são fiéis, têm todo o tipo de superstições e de profecias quando compram uma ou mais cautelas. E há quem goste de assistir às extracções, em especial da Lotaria do Natal. "No ano passado foi uma surpresa, houve animação. As pessoas ficaram tão contentes com o espectáculo que se levantaram e bateram palmas", conta Alice Sousa, 50 anos. E Margarida Moura, 46, acrescenta: "Sou do tempo em que a sala enchia e ficava a abarrotar no dia da extracção. A Lotaria do Natal continua a ter muita assistência, mas já não é a mesma coisa. Começou a perder audiências quando os números passaram a ser sorteados na televisão. E, agora, rapidamente são colocados na Internet".

Alice e Margarida romperam com tradição dos pregoeiros homens. Foi há 22 anos, quando foi aberto o primeiro concurso misto. São funcionárias administrativas do Departamento de Jogos e viram no pregão da Lotaria uma forma de aumentar o rendimento mensal, não dizem em quanto. Agora, estão "completamente viciadas" e também compram a sua cautela. "O meu sogro já era pregoeiro e achei piada. O meu marido também concorreu e ficou", conta Margarida.

Nunca sentiram que tivessem aptidões vocais especiais ou alguma vez foram elogiados pelo tom de voz, mas um júri, a que presidiu Glória de Matos, considerou que eram indicados para apregoar. E tiveram lições com a actriz e mestre em bem dizer.

"Há quem nos pergunte se podemos jogar, mas aqui não há intervenção humana. O facto de participarmos é a prova de que não há nenhuma forma do jogo ser adulterado", sublinha Pedro Leandro, 42 anos, há 21 a cantar a Lotaria.

Nunca ganharam um prémio chorudo e garantem que continuariam a apregoar se tal acontecesse. "Só me interessam os três últimos números, não quero saber dos dois primeiros. Jogo com o 213, e há duas semanas saíram-me cem euros. Eles já sabem que é o meu número e perceberam que tinha ganho. Eu também percebi que viram logo que tinha ganho", confidencia Luísa Sousa.

Luísa dizia que só faria a extracção até aos 40 anos e, agora, promete só parar com a reforma. Ela e os outros começaram ainda não se usava o microfone na lapela. A telefonista dava à manivela e anunciava os números na salinha ao lado, a Rádio Renascença transmitia em directo e os pregoeiros saíam da sala para se agarrarem aos telefones e informarem os revendedores de cautelas. Foi há 20 anos, não foi assim há tanto tempo!

O sorteio da Lotaria passou a ter transmissão directa na RTP1 e, também, na SIC, com a Roda dos Milhões. Foram tempos de grande popularidade com os pregoeiros a serem reconhecidos nas ruas, tornados celebridades. Hoje só a Lotaria Clássica é transmitida em directo pela TV. É às segundas-feiras na Hora de Sorte, na RTP2, com a extracção a ser feita às 21.45 nos estúdios da estação pública. E os pregoeiros, que já foram 40, estão reduzidos a 12. Está para breve um novo concurso para candidatos a pregoeiros.

"Houve uma altura em que andávamos pelo País. Uma vez fiz uma extracção em Viseu em directo de um lagar. No final, houve uma prova de vinhos", conta Pedro Leandro.

Sempre acompanhados do júri: representante do Governo Civil, da Inspecção-Geral de Finanças e do Departamento de Jogos. São os primeiros a entrar e os últimos a sair, para garantir que as esferas têm os números de 0 a 9 e estão seladas.

Há pessoas que todas as semanas se deslocam à sala de extracção da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa para assistir ao vivo e em directo ao sorteio. A maioria, reformados que se cumprimentam pelo nome e com piadas. Esperam o momento da saída dos números para, em total silêncio, ouvirem os pregoeiros. Jogadores ou cauteleiros, com listas dos números adquiridos. E há, também, quem faça do jogo clandestino modo de vida e vá para ouvir os três primeiros prémios. Saem logo de seguida. Os outros, os jogadores confraternizam no final e comentam "ainda não foi desta". Se lhes saiu um "prémio gordo", poucos o confessam.

Maria Guilhermina Antunes ganhou 50 mil euros em 2006, prémio dividido com um sócio a quem dispensou uma fracção. É o 1311, número fixo com que joga há tantos anos que nem se lembra. Também "tem fé" no 20 642, comprado pela primeira vez por indicação da neta que ainda andava no colégio, e no 23 623. A neta está casada há mais de 20 e o seu número nunca deu sorte à avó. A mulher, de 84 anos, vai jogando com outros números na Lotaria Clássica e Lotaria Popular, às vezes, até no Euromilhões.

"Venho aqui há mais de 40 anos, é a única distracção que tenho. Não faço viagens, não faço nada, mas tenho gosto pela Lotaria. Vou à igreja e, depois, venho aqui, à Santa Casa da Misericórdia." É conhecida pela perseverança e teorias. "Até o Euromilhões é um mistério", diz quando não lhe sai nada. Mas admite: "Não tenho razão de queixa." Ainda no mês passado lhe saíram "43 contos com a terminação 549". Viúva, ex-modista de vestidos de noiva e alta costura, tem no jogo a sua extravagância. E a família não a critica: "O dinheiro é meu, se não tivesse rendimento, não jogava!"

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