Amadeo e o "seu" cinema

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Em paralelo com a exposição dedicada a Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918), patente no Museu do Chiado (até dia 26), a Midas Filmes repôs o documentário que Paulo Rocha dedicou ao pintor modernista português, Máscara de Aço contra Abismo Azul (1988), também já disponível em DVD (em cópia restaurada pela Cinemateca Portuguesa). O acontecimento é tanto mais motivador quanto somos compelidos a questionar a própria classificação "documental" do projeto.

Uma frase emblemática de Paulo Rocha tem sido evocada: "Tentei filmar esse período da sua pintura com um estilo diferente, como se a câmara fosse um pincel na mão do próprio Amadeo, com as suas cores e as suas formas." Assim é. Mesmo nas componentes mais tipicamente documentais - registando a exposição que, há 30 anos, na Fundação Gulbenkian, assinalou o centenário do nascimento do pintor -, o filme distingue-se por uma singularidade visual em que os visitantes (incluindo o então Presidente da República, Mário Soares) surgem como silhuetas fantasmáticas secundarizadas pela vibração de cores e formas dos objetos expostos.

O título alude a duas personagens de banda desenhada criadas pelo próprio Amadeo, abrindo uma hipótese de artifício e transfiguração que o filme trabalha através da presença saborosamente teatralizada dos atores: Inês de Medeiros, Fernando Heitor, Miguel Guilherme, Vítor Norte, Henrique Viana e José Viana. Paulo Rocha descobre nas imagens de Amadeo, não apenas a visão de um criador que não se deixou fixar em qualquer movimento ou escola, mas também uma arte de contraponto e montagem que, em última instância, envolve um desejo de cinema.

Na trajetória de Paulo Rocha, a lógica de "biografia teatral" de Máscara de Aço contra Abismo Azul seria prolongada através dos retratos de dois cineastas: Oliveira, o Arquiteto (1993) e Shohei Imamura, le Libre Penseur (1995), ambos realizados para a série "Cinéastes de notre temps". Há em todos eles um método de colagem, algures entre o didatismo informativo e a ironia estética, que surge consolidado no seu filme final, o autobiográfico Se Eu Fosse Ladrão... Roubava (2012).

A obra de Paulo Rocha envolve, assim, um contributo exemplar para a reavaliação da dicotomia documentário/ficção, tão marcante no período do Cinema Novo (e das "novas vagas" dos anos 60) a cuja dinâmica o seu nome está visceralmente ligado. Em particular a sua primeira longa-metragem, Os Verdes Anos (1963), continua a tocar-nos pelo modo como "documenta" o impossível romantismo da cidade de Lisboa.

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