Álvaro Santos Pereira: "Tolerância zero ao compadrio entre política e interesses"

Entrevista a Álvaro Santos Pereira, Diretor de Estudos dos Países Europeus do Departamento de Economia da OCDE
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Álvaro Santos Pereira é um dos dois diretores do departamento de Economia da OCDE, que nasceu com outro nome (Organização para a Cooperação Económica) para ajudar a gerir o Plano Marshall, chave da reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial. A OCDE também é conhecida como o clube dos países mais ricos, já que os seus 34 membros produzem mais de metade da riqueza mundial. A discussão sobre as offshores, a sua regulamentação e a falta dela têm assumido cada vez mais importância neste espaço, e é daqui que tem surgido algum impulso para tentar controlar este mundo paralelo e opaco que desvia dos cofres públicos entre 133 e 213 mil milhões de euros em impostos não pagos. Numa altura em que os orçamentos nacionais vivem pressionados pela urgência de reduzir os défices públicos e os contribuintes, designadamente a classe média, estão no limite da tolerância fiscal, a regulamentação das offshores passou a ser uma obrigação política incontornável, embora com muito caminho para andar. Álvaro Santos Pereira respondeu às perguntas por e-mail, entre Paris, onde vive faz este mês dois anos, e uma viagem a Washington.

A OCDE tem liderado a pressão para que os países adotem medidas de fiscalização, transparência e divulgação que travem o crescimento desta economia paralela. Tem ideia do prejuízo que estes esquemas causam aos países?

Sim, a OCDE tem liderado o processo para aumentar a transparência, a fiscalização e a divulgação de informações entre os países com o intuito de combater a economia paralela e a evasão fiscal. Criámos o Fórum Global para a Transparência e Troca de Informações Tributárias, no qual estão presentes mais de 130 países, que visa exatamente fomentar a transparência fiscal e promover a cooperação internacional nesta área. Há, de facto, algumas estimativas sobre o prejuízo que esta falta de transparência fiscal tem causado, que rondará valores entre os 133 e os 213 mil milhões de euros em impostos não pagos em todo o mundo. Um montante que é superior ao PIB português. Um valor verdadeiramente impressionante.

Com um prejuízo tão elevado e que não para de aumentar, a resposta dos países não parece à altura das circunstâncias...

A falta de transparência e a opacidade fiscal têm um custo enorme para os governos e para os países do mundo. Por isso, é fundamental inverter esta situação. No fundo, o que se está a fazer é corrigir situações de abuso que se foram criando ao longo das últimas décadas. E há duas respostas possíveis: ou se trava a globalização para evitar a ocultação de capitais, ou se criam regras comuns entre os países para acabar com as situações ilícitas. Ora, reverter a globalização e fomentar o protecionismo seria trágico para o mundo e para o desenvolvimento económico. Por isso o que é preciso fazer é melhorar a globalização, combatendo abusos e promovendo mecanismos para identificar e punir os que abusam do sistema. E ainda fomentar a cooperação internacional para que os corruptos e os que fogem aos impostos não se possam mais esconder atrás de esquemas ilícitos.

Em julho do ano passado, a OCDE divulgou três relatórios sobre os paraísos fiscais, mas a verdade é que não surtiram efeito. Se os Estados não atuarem, se as grandes economias não travarem esta prática, não há muito a fazer. É assim?

Muito pelo contrário. Os resultados dos vários relatórios e recomendações de política da OCDE têm tido um impacto muito profundo, não só porque os países do G20 decidiram avançar com políticas concretas, mas também porque algumas jurisdições, como a União Europeia, estão a adotar medidas específicas para acabar com os abusos e aumentar a transparência fiscal.

Pode dar-nos exemplos de medidas que têm sido aplicadas?

A troca automática de informações fiscais entre quase todos os países do mundo vai avançar em 2017 e 2018. A partir dessa altura será muito mais difícil ocultar fugas aos impostos ou fortunas ilícitas. Com a troca automática de informações os corruptos e os que fogem aos impostos nas suas jurisdições vão ter a vida muito mais dificultada. As exceções a esta troca automática de informações são muito poucas e incluem apenas países como o Panamá e um par de países no Pacífico Sul.

[citacao:Há 133 a 213 mil milhões de euros em impostos não pagos em todo o mundo. É mais do que o PIB português]

Nem todas as offshores são más, há dinheiro que foi declarado na origem e que continua a declarar os juros, dividendos e outras rendas, dizem os defensores destas praças financeiras. Concorda?

Sim, é verdade. Se o dinheiro for declarado e se for apenas à procura de um retorno melhor, então pode justificar-se. Se não for, obviamente que não se justifica. No entanto, o mais importante em todo este processo é a transparência. Como é óbvio, não está em causa se há países ou territórios que optam por uma fiscalidade para atrair investimento ou para obter melhores retornos. O que está em causa são os abusos que muitos têm praticado para defraudar os seus países.

Mas justifica-se ou não este clamor público contra as offshores?

Sim, justifica-se, principalmente quando a falta de transparência e a ausência de troca de informações entre os países têm conduzido a uma proliferação de práticas que penalizam aqueles que cumprem as regras e beneficiado os que fogem aos impostos ou pertencem à chamada economia paralela. Não tenho dúvidas de que todo este justificado clamor público já está a ajudar a mudar as coisas. Alguns países aceleraram a agenda da troca automática de informações e o combate à evasão fiscal. E penso que outros que têm promovido as offshores e práticas menos transparentes serão forçados a mudar os seus comportamentos pela comunidade internacional. Numa altura em que a crise internacional deixou muitas marcas, o clamor público é ainda mais justificado contra os que se aproveitam das falhas do sistema.

A corrupção é um dos maiores problemas, seja em grande ou pequena escala, e as offshores servem de tapume. Concorda?

Tem de haver tolerância zero à corrupção, ao compadrio entre o poder político e os grupos de interesse. Tem de haver tolerância zero a quem utiliza deliberadamente mecanismos obscuros para não cumprir as suas obrigações fiscais. E este clamor público só irá ajudar a que a tolerância zero seja instituída por um grande número de países.

Faz sentido dizer que as fortunas mais pequenas vão perder progressivamente a proteção que as beneficia para tranquilizar os países (que precisam de receitas) e a opinião pública, mas as maiores continuarão a salvo?

Se as fortunas pequenas forem lícitas e declaradas, então não têm nada a temer com a implementação da troca automática de informações. Sim, o segredo e a falta de transparência fiscais têm levado a uma grande perda de receitas fiscais. É exatamente por isso que a troca automática de informações fiscais é tão importante. Quem não tem nada a esconder nada tem a temer.

Como se justifica que dentro da União Europeia se tolere as práticas bancárias suíças, luxemburguesas, mas também o que acontece nos territórios sob jurisdição britânica e não só?

Graças às políticas sugeridas pela OCDE e acordadas entre os países do G20, bem como mais de 130 países, já há muito poucos Estados que toleram práticas pouco transparentes. E na Europa, a Suíça e o Luxemburgo não serão mais exceções. Como já referi, a introdução dos mecanismos de troca de informações automáticas entre os países vai acabar com as práticas bancárias menos transparentes. E estes dois países já concordaram em introduzir estes mecanismos, aumentando assim a transparência fiscal. O governo britânico também já aprovou a troca automática de informações nos territórios sob sua jurisdição.

Que outras iniciativas de combate à opacidade financeira tem a OCDE previsto desencadear?

A OCDE e o Fórum Global para a Transparência e Troca de Informações Tributárias vão continuar a liderar o combate à opacidade financeira. No final de 2015, a OCDE e os países pertencentes a este fórum aprovaram uma série de iniciativas para combater a opacidade fiscal promovida por algumas multinacionais para fugirem à tributação dos lucros. Esta é uma agenda muito ampla e que poderá ter um impacto muito grande no combate à evasão fiscal. E, na troca automática de informações fiscais, muitos países já estão a recolher dados, prevendo-se que a troca de informações possa ocorrer já em 2017. Outros países, como a Suíça, irão começar essa troca automática de informações em 2018. Não tenho dúvidas de que a OCDE continuará a marcar a agenda internacional no âmbito do combate à evasão e à fraude fiscal nos próximos anos.

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