Alta-costura sinfónica no pronto-a-ouvir de Camané
Diz a sabedoria popular que quando uma porta cerra outra se abre. Camané é a prova dos limites do senso comum eternizado em provérbio: está com a porta do passado escancarada e a do futuro entreaberta. É nessa correnteza de ar que, enquanto um novo disco é finalizado, o público pode ouvi-lo a cantar temas do seu repertório juntamente com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, de quinta-feira a domingo, no Teatro São Luiz.
O que à primeira vista pareceria uma mera revisitação da obra do fadista (o que já não era pouco), revela-se um puzzle sonoro. Além da voz de Camané, do piano de Filipe Raposo e de Daniel Schvedt, da Metropolitana (dirigida pelo maestro Cesário Costa), da guitarra de José Manuel Neto, da viola de Carlos Manuel Proença, do contrabaixo de Paulo Paz e do acordeão de Pedro Santos, outras vozes se juntam em palco através do Coro Ricercare.
Após Camané ter convidado Filipe Raposo para assumir a direção artística do espetáculo, o alinhamento foi concluído e o trabalho de orquestração começou. Um processo de dois meses, que Filipe Raposo nega ser complicado. "O trabalho de arranjo ou orquestração parte de uma premissa, que é o fado na sua essência. Neste caso há uma forma já estipulada, que são os fados do Camané, em que canta e em que tocam baseados nos discos, e de certa forma a minha função é como se estivesse a desenhar para alta-costura, estou a fazer uma roupa que serve o modelo. Neste caso o modelo é o fado e nesse sentido há a necessidade de respeitar o que está feito, em primeiro lugar, e em segundo servir também o próprio fado, através de texturas, se calhar de algumas alterações ligeiras de harmonia, trazer algum sabor novo que vai contribuir para que o concerto tenha algo de especial."
Para os dois músicos é garantido que seja especial - ambos afirmam sentirem-se em casa. Camané já atuou nos Coliseus, no Centro Cultural de Belém e noutros grandes palcos, mas o São Luiz é um espaço onde pode dar asas à imaginação. "Sim, acho que não só no meu caso, mas o de muitos outros artistas que têm criado aqui grandes projetos e têm tido oportunidade de arriscar coisas que noutras salas é mais complicado." Filipe Raposo complementa: "Há um lado emocional forte. É uma sala que primeiro deu-me enquanto ouvinte, e continua a dar, e houve uma altura que foi o meu dever retribuir. Fiz aqui concertos muito importantes, inclusive o lançamento do meu último disco (de jazz, Inquiétude), no ano passado. Participei também nalgumas peças de teatro. E há o lado técnico: é uma sala topo de gama, assim como a própria direção e as pessoas que trabalham aqui são altamente qualificadas. Há uma missão, da direção artística da Aida Tavares, em construir um público fiel à programação."
Estamos no Jardim de Inverno do teatro lisboeta e recordamo-nos de que Porta Aberta é o nome de uma canção que o fadista gravou em Do Amor e dos Dias enquanto este, porta de emergência transposta, faz um compasso de espera e ingere nicotina. "Agora estou a fumar menos, reduzi muito o tabaco. Já tive alturas em que parei de fumar, já deixei de fumar umas três vezes", comenta mais tarde, no final do ensaio que o juntou ao piano de Filipe Raposo.
Pouco passa do meio-dia e do palco saltam as notas do piano e o dó de Camané em cantar a desoras. "Detesto cantar de manhã." Hábitos noctívagos típicos de um fadista? Equívoco com sobredose de preconceito. "É caríssimo fazer noitadas. Levanto-me cedo, às 09.00, 09.30, e gosto muito mais. Quando cantava nas casas de fado é que me deitava às 4, 5 da manhã, mas já deixei as casas de fado há 20 anos e ultimamente tenho saído pouco." Filipe Raposo vira-se para Camané: "A questão da voz também é um bocadinho as cordas vocais acordarem. É o teu instrumento. Digamos que não reage imediatamente como se estivesse quente, é como um músculo." E o piano, toca-se a qualquer hora? Resposta legalista primeiro: "Não. Por exemplo, se vives num apartamento, a partir das 22.00 já não podes tocar. Mas podes começar cedo, às 08.00." Resposta metódica, depois: "Tens de ter uma postura para não haver esforço algum e quando sentires o mínimo esforço parar para evitar lesões."
Talvez tenha sido com esse estado de espírito que Camané aprendeu a cantar tango a horas que o próprio considera impróprias. "Às vezes ia ao Conservatório às 10.00 da manhã ter com o Daniel Schvetz para aprender a cantar uns tangos." Agora, em jeito de agradecimento público por parte de Camané, o músico e compositor argentino estará em palco para o acompanhar ao piano nos temas do seu país.