"Alpoim Calvão como estratega era ao nível de Afonso Albuquerque e com menos meios"
Este seu livro é sobre os grandes homens do mar portugueses, como o próprio título índica. Já escreveu outros livros sobre história marítima e os Descobrimentos. Recordo-me do seu livro sobre grandes batalhas navais, e para mim ficou na memória a batalha de Diu, no início do século XVI, como o grande confronto naval da história de Portugal. D. Francisco de Almeida é, pois, um dos seus biografados agora. O que é que faz deste homem um grande comandante naval?
D. Francisco de Almeida foi não só um grande chefe militar naval, o homem que venceu a batalha que permitiu aos portugueses dominar o Índico durante décadas, mas foi também um grande estratega. Foi ele que definiu a política portuguesa para o oceano Índico e que nos permitiu manter o domínio do Oriente no século XVI.
Essa batalha foi contra os mamelucos do Egito, pouco antes de serem substituídos pelo Império Otomano como grande potência islâmica?
Sim, contra os navios dos mamelucos, do samorim de Calecute e do sultão do Gujarate. Eram três esquadras reunidas sob o comando do egípcio.
Potências muçulmanas que tentavam expulsar os portugueses do Índico, por estarem a tomar conta do comércio das especiarias?
Exato.
Quando pensamos nos nossos homens do mar, pensamos muito nos navegadores no sentido de descobridores, mas a componente deles como chefes militares é um pouco esquecida. Não lhes bastava chegar aos sítios, tinham de se afirmar militarmente. A esse nível Afonso de Albuquerque é também um expoente?
É. Afonso de Albuquerque é o homem que na sequência do governo de Francisco de Almeida estabelece a posição portuguesa acabando apenas com o poder marítimo que tínhamos para dominar o mar e criando as bases do império. Ou seja, criou uma capital que foi Goa e conquistou os pontos-chave da entrada dos mares fechados, nomeadamente do golfo Pérsico com Ormuz e do mar da China com Malaca. Falhou a conquista de Áden para dominar o mar Vermelho, mas foi o homem que completou a estratégia de Francisco de Almeida.
Ou seja, quando falamos de Gil Eanes e Diogo Cão estamos a falar de navegadores que vão tentando ir mais além. Mas quando chegamos ao século XVI já estamos a falar de marinheiros de combate para a conquista de posições.
Conquista e comércio. O que pretendíamos no Oriente era o comércio das especiarias que, perante a oposição dos muçulmanos lá estabelecidos, tivemos de conquistar a tiro.
Quando fala de pontos-chave como Ormuz, noto que os portugueses chegaram a ter no golfo Pérsico também o Bahrein, entre outras possessões. Quando se olha para estes pontos parecem quase as posições estratégicas que hoje os americanos ainda dominam na região. Esse poder marítimo de Portugal no século XVI era claramente um poder inquestionável, não havia qualquer potência capaz de rivalizar com Portugal no Índico?
Não, não havia, porque tínhamos um avanço grande em termos de navios e especialmente artilharia. Os nossos artilheiros disparavam as peças mais rapidamente do que os adversários, conseguiam uma cadência de tiro maior, o que lhes permitia ganhar vantagem durante o combate. Em 1502 foi criado uma espécie de cartucho que era uma embalagem de seda que era metida dentro da peça e que permitia carregá-la mais rapidamente, triplicando a velocidade de tiro.
O nosso domínio dos mares não era só devido à construção dos navios, devia-se também à capacidade de fogo, é isso?
Devia-se à ciência.
Daquilo que tem estudado, como historiador mas também pela experiência de oficial e de diretor do Museu de Marinha em Lisboa, há alguma explicação simples para o mar ter sido o nosso destino e o meio onde os portugueses foram poderosos?
Há uma razão geográfica que é a posição que o país teve até ao século XIX na fronteira terrestre. Portugal e Espanha estiveram de costas voltadas e foram quase sempre inimigos. A única saída que os portugueses tinham para o seu comércio e as suas viagens era o mar, e isto começa na primeira dinastia. O primeiro naufrágio conhecido de um navio português é de 1194, o que significa que nessa altura nós já comerciávamos com o norte da Europa. Foi na Flandres. Historicamente sempre estivemos vocacionados para o mar, por outro lado, a pesca foi uma parte importante da nossa alimentação.
Aquela ideia do infante D. Henrique como grande promotor das Descobertas. É apenas mais um no processo ou há uma verdadeira transformação com ele?
D. Henrique era aquilo a que hoje podemos chamar um mecenas, era um homem que através da Ordem de Cristo tinha o dinheiro que permitiu fazer aquelas viagens, para contratar os cartógrafos, contratar os astrónomos que vieram para cá trabalhar e que permitiram desenvolver toda a área dos Descobrimentos, mas o homem que muito fomentou esta viragem para o mar foi o infante D. Pedro, irmão de D. Henrique, que faleceu cedo e D. Henrique continuou a sua missão. Na história portuguesa temos a seguir D. Afonso V, que se vira para as conquistas em Marrocos, e depois D. João II que definitivamente atira o país para o Atlântico com a descoberta no sul de África da passagem para o Índico. Nos séculos XV e XVI há uma luta na sociedade portuguesa entre a nobreza que pretendia a conquista de Marrocos como expansão territorial e a burguesia que via a expansão atlântica como criação de novas áreas comerciais e novos pontos de comércio e aquisição de matérias-primas.
Voltando à primeira dinastia, D. Fuas Roupinho é a figura inicial que aparece no seu livro. Estamos a falar de quem?
Estamos a falar de um homem que é alcaide-mor de Porto de Mós, que foi o primeiro comandante das galés e que venceu a primeira batalha naval que está registada na nossa história. Já como reino de Portugal, é este o primeiro combate naval que travamos contra os muçulmanos ao largo do cabo Espichel e que ganhamos por uma série de razões antecipadas, nomeadamente porque a guarnição dos navios tinha já sido morta em terra perto de Porto de Mós, portanto os navios inimigos estavam desguarnecidos quando foram atacados pelos navios portugueses.
No entanto, vamos recorrer, mais tarde, ao italiano Manuel Pessanha, para fundar a nossa marinha. Os italianos estão desde esse momento ligados à expansão marítima portuguesa, pois há muitos italianos nas Descobertas.
Manuel Pessanha é convidado numa altura em que, por razões diversas, não tínhamos ninguém preparado para comandar os navios, então ele veio com mais 20 genoveses reorganizar a Marinha portuguesa com o célebre contrato de 1 de fevereiro de 1317, que muitos historiadores consideram como o nascimento da Marinha portuguesa. Eu não concordo, digo que Marinha tem 900 anos e não 700. Mas ele foi efetivamente o homem que, através de um documento escrito que existe, reorganizou a Marinha e a quem foram atribuídas funções específicas para o desenvolvimento da Armada Real.
A partir desse tempo há sempre italianos ao serviço da Marinha portuguesa. Há inclusive Américo Vespúcio, que dará nome ao Novo Mundo descoberto por Cristóvão Colombo, outro italiano.
Sim, há muitos italianos que vêm para Portugal nos séculos XV e XVI e que são incorporados nas expedições portuguesas de descobrimentos e de comércio marítimo. Temos o Américo Vespúcio, temos o António da Noli, temos o Luís Cadamosto, que fez três viagens a África...
O saber que eles tinham de navegação no Mediterrâneo, embora um mar quase fechado, acabou por ser útil depois para a expansão do Atlântico?
Não. A navegação do Mediterrâneo é completamente diferente da nossa. Eles foram utilizados pela sua experiência em termos de organização de comércio marítimo, não em termos de navegação, porque a nossa era completamente diferente e utilizando métodos novos.
Estamos agora nas celebrações dos 500 anos da circum-navegação, que sabemos que é um projeto financiado pela coroa espanhola encabeçado por um português e terminado por um espanhol, mas quando se lê o relato do italiano Antonio Pigafetta percebe-se que aquilo não só é um projeto de Fernão de Magalhães como sem ele o projeto não tinha qualquer hipótese de chegar a bom porto.
E o projeto de Magalhães não chegou a bom porto, porque era atravessar o Pacífico, provar que as Molucas estavam no hemisfério espanhol da divisão de Tordesilhas e regressar pelo Pacífico. Quando ele faleceu, Juan Elcano não foi capaz de encontrar o caminho pelo Pacífico e veio pelo local que já era conhecido, pelo hemisfério português, passando muito a sul do cabo da Boa Esperança para não haver encontro com navios portugueses. Acabou por arribar a Cabo Verde para pedir alimentos e depois acabou por chegar a Espanha com 18 homens.
De qualquer forma sabe-se que houve sucessivas revoltas para voltar para trás e é a determinação de Magalhães que leva à descoberta do estreito no Chile hoje com o nome dele e à travessia do Pacífico. Fala-se muito do trabalho coletivo nos navios, mas neste caso aquele homem era o que punha a andar esta expedição?
Era, porque ele tinha ordens do rei espanhol para levar avante aquela missão e portanto as revoltas foram sufocadas, algumas violentamente. Houve espanhóis que se revoltaram e que foram abandonados na América do Sul num sítio sem nada.
Magalhães, sendo um português que escolheu servir a coroa espanhola, podemos dizer apressadamente que foi um traidor, mas passados 500 anos isso não faz sentido, faz sentido é falar de um português que aprendeu tudo em Portugal...
Nem na época fazia sentido falar de traição, porque era habitual os nobres quando queriam arranjar promoções servirem um rei estrangeiro. Não é uma traição e ele foi autorizado por D. Manuel a ir para Espanha servir o imperador Carlos V. A lealdade era ao rei, não era ao reino. O que é dúbio é que ele vai dizer a Carlos V que ele tem razão, contra aquilo que dizia a D. Manuel I, na questão das Molucas. E estava enganado porque elas estavam no hemisfério português.
Voltando ao seu livro das grandes batalhas, há também um período depois dos Descobrimentos em que Portugal brilha, que é no século XVIII na batalha de Matapão, que é quando D. João V envia a armada portuguesa para combater os otomanos. Esta batalha, não sendo igual à de Lepanto, têm, porém, tal importância que Lisboa ganha do Papa ser um patriarcado, certo?
Não é Lepanto, como diz, mas é uma batalha que obrigou os turcos a recolherem-se ao Mediterrâneo Oriental e a deixar a pressão sobre o Mediterrâneo Central e sobre os países cristãos e essa tentativa de expansão turca acabou por ser contrariada em simultâneo pelas derrotas em terra infligidas pelos austríacos.
Essa armada portuguesa ser muito poderosa nessa época tem que ver com o ouro e os diamantes do Brasil que davam meios a D. João V que outros reis não teriam.
Essa batalha de Matapão aparece no início da exploração do ouro e dos diamantes no Brasil e permite reerguer a armada portuguesa do zero. É ela que vai lançar depois a reorganização da Marinha no final do século XVIII, que permite criar uma armada real, que é a quarta europeia no final do século XVIII. Mas é com Matapão que começa esse período de rearmamento naval do país.
O mérito de Matapão deve ser atribuído a D. João V ou há algum almirante que se destaque?
A participação em Matapão é um objetivo de D. João V para pôr o país no meio da política europeia, mostrar que Portugal é um Estado com capacidade militar e capaz de intervir em conflitos internacionais. O almirante é alguém que se distinguiu porque conseguiu sozinho vencer os turcos, porque o grande esforço da batalha foi travado pelos seis navios portugueses. Os franceses e os navios do Papa ficaram todos a sotavento e portanto ninguém interferiu no combate, mas esse almirante foi depois politicamente considerado persona non grata, de tal maneira que a recompensa que D. João V lhe deu foi nomeá-lo capitão-general dos Açores, ou seja, exilou-o para os Açores porque era uma figura que para potências estrangeiras e para o Papa era tão importante como o rei, e D. João V não suportava isso.
Dando mais um salto mesmo grande para o século XX, na Guerra Colonial há vários combates da Marinha, mas o que fica na memória de toda a gente é a Operação Mar Verde em 1970, em Conacri, pensada e liderada pelo comandante Alpoim Calvão, que é o último dos nomes que tem no seu livro como grande homem do mar português
Militarmente aquela operação foi muito bem planeada e muito bem desenvolvida. O objetivo era libertar os 26 prisioneiros portugueses que lá se encontravam, incluindo o sargento Lobato que estava lá há sete anos e tinha feito três tentativas de fuga e foi sempre apanhado junto à fronteira. E foi muito bem-sucedida.
E foram libertados todos os portugueses presos pelo PAIGC, que combatia pela independência na vizinha Guiné-Bissau?
Foram todos libertados. Conseguiu-se também destruir uma parte militar do PAIGC e o que falhou foi o terceiro objetivo que era fomentar uma rebelião na República da Guiné, e falhou por falta de apoio e principalmente porque a deficiência daquela operação eram as informações. E Alpoim Calvão, como comandante da operação, não tinha sido informado da mudança de local dos aviões da Força Aérea da Guiné-Conacri e essa falha na destruição dos aviões, que nos permitiria manter o controlo aéreo da região, é que levou a interromper a missão e a fazer uma retirada com receio de que os aviões aparecessem.
Pode dizer-se que é uma operação anfíbia?
É uma operação anfíbia.
Porque há entrada em território estrangeiro por mar e há libertação de presos em terra e destruição de tropas inimigas?
E há depois o reembarque das forças que foram desembarcadas.
Quando olha para Alpoim Calvão puramente como chefe militar, é possível fazer uma comparação, sem exagerar, entre os méritos deste homem e a forma aguerrida como combatiam Afonso de Albuquerque ou Francisco de Almeida no século XVI?
Apesar de as épocas serem diferentes, Alpoim Calvão foi um grande estratega ao nível de Afonso de Albuquerque. Aquela ideia de ir buscar os portugueses é comparável a um grande chefe militar do século XVI, os meios é que são completamente diferentes. Afonso de Albuquerque tinha uma esquadra que não tinha comparação no Índico, Alpoim Calvão na Guiné tinha meia dúzia de lanchas de qualidade inferior a algumas que ele acabou por destruir em Conacri.
Talvez isso ainda permita que a comparação seja mais extraordinária...
Sim. A operação foi mais difícil.
Calculo que a maior dificuldade que teve a escrever este livro tenha sido quem é que deixa de fora e quem é que inclui...
Inicialmente foram 130.
Qual o maior injustiçado que ficou de fora?
Acabei por tirar Brás de Oliveira, que foi professor da Escola Naval durante 30 anos, foi professor de História e de Direito, mas tive de pesar, naquele final de século XIX e início de século XX, quando temos o João de Azevedo Coutinho, quando temos um D. Carlos e um D. Luís, quando temos um Afonso Cerqueira, um Carvalho Araújo, um Gago Coutinho e um Sacadura Cabral. Foi o nome que mais me custou tirar.
D. Carlos e D. Luís, é curioso que o nosso penúltimo rei que é assassinado seja um rei que a história recupera como um oceanógrafo, um homem do mar, um pintor, uma figura admirável nesses aspetos. Mas era também um grande homem do mar?
Era um grande homem do mar, pioneiro da investigação oceanográfica na costa portuguesa. E D. Luís, o pai, foi formado para ser oficial de Marinha, porque não estava na linha direta da sucessão, e saiu do comando do navio para ser rei. Veio de Inglaterra deixando o comando do navio para suceder ao irmão... quando o irmão morre ele tem de vir para Lisboa para subir ao trono.
E que faz o padre António Vieira nesta sua seleção?
A presença do padre António Vieira nos Homens do Mar está relacionada com a sua ação enquanto estratega da Guerra da Restauração. Devem-se-lhe os esforços para equipar a nossa marinha de comércio e a Armada Real com navios excedentários da Holanda, onde tinha terminado a Guerra dos 30 Anos. Escreveu, em carta ao nosso embaixador em Haia, que "navios, navios e mais navios, é o que precisamos para nos desenvolvermos e para nos defendermos". A razão por que não foram comprados está no livro; os mecenas eram cristãos-novos entretanto presos pela Inquisição. Foi também quem sugeriu ao monarca que, em caso de derrota militar frente à Espanha, retirasse para o Brasil de onde reinaria sobre os possessões ultramarinas portuguesas. Foi este projeto que o príncipe regente D. João seguiu em 1807, perante a invasão dos exércitos de Napoleão. Já antes tinha sido preparada uma saída de D. João V e de D. José I perante as ameaças de invasão espanhola.
Acaba propositadamente o livro com Alpoim Calvão por não querer falar de gente ainda viva?
Não, acabei com ele dentro da escolha de que lhe falei porque quando escrevi o livro o Alpoim Calvão ainda estava vivo. Não foi uma questão de serem só personalidades que já tivessem morrido. E ainda leu o que escrevi sobre ele.