O homem que já deveria estar a viver à sombra de uma palmeira - e não quer
Há a época da sardinha, há a temporada do bivalve, há o Europeu de futebol e, entre abril e maio, há uma janela de algum bom tempo que se abre nos céus dos Himalaias e consome a atenção de milhares de pessoas no mundo inteiro. Este ano, fui apanhado numa dessas ondas de entusiasmo que de repente se transforma em obsessão. Comecei a ler, a ver e a procurar tudo o que havia sobre a subida à montanha mais alta do planeta - o Evereste. Comprei livros e documentários, fui a blogs e sites, aborreci os amigos com as histórias e exibi, vaidoso e insuportável, o meu conhecimento pintado de fresco. Um novo-rico da montanha. Comecei a seguir contas de alpinistas no Twitter e preparei-me para assistir a mais uma temporada da escalada ao ponto mais alto do mundo. Abril e maio - a altura em que tudo acontece.
Faltava-me no entanto uma coisa essencial. Aventurar-me eu próprio nesse desafio extremo. Tirar umas semanas de férias com a desculpa esfarrapada de que iria em reportagem pelo jornal. Talvez chegar ao campo base, a 5300 metros de altitude, e ver ali de perto, de nariz apontado para o céu e queixo caído, esse acontecimento extraordinário onde se misturam alpinistas de corpo e alma com grupos de amadores lunáticos dotados de uma razoável conta bancária capaz de pagar a derradeira odisseia humana.
Não fiz nada disso, claro.
Sou jornalista, voyeur por definição. Nalgumas áreas, digamos que me satisfaço intelectualmente. Falta-me também a monumental capacidade de sofrimento físico (mental?) que aquelas pessoas se revelam capazes de encontrar quando tudo pode acabar mal e é possível que acabe mal. O frio, a falta de oxigénio que adormece o cérebro e consome o corpo a cada minuto. A morte que acompanha cada passo, a incerteza da chegada e do regresso - sempre o mais perigoso e difícil de levar a bom porto, o regresso.
Sofro de ansiedade permanente, vivo desta energia canibal. Alimento-me desta combustão interior para tentar fazer melhor o que faço todos os dias, embora essa radical condição clínica também me faça errar estupidamente. Errar é quase proibido em alta montanha. As temperaturas descem abaixo dos 30º, 40º graus centígrados. Dormir é quase impossível, o mau tempo é bíblico, os ventos varrem tudo sem misericórdia, a cara está sempre gelada, os dedos das mãos e dos pés enfiados numa geladeira constante e ameaçadora. Calçar as botas com crampons - para fixar na neve - pode levar meia hora, tal é a descoordenação e a exaustão. A ressaca da altitude não tem paralelo, a não ser na debilidade provocada pela doença. Um pequeno erro - e já está.
Não subi portanto ao Evereste (8848 metros, zona própria para aviões), nem aos seus primos mais baixos. Não subi a nada de relevante - é tempo de reconhecer que também sofro moderadamente de vertigens. Optei então por uma rota mais segura. Cheio de resolução, desci em passo apressado a avenida da Liberdade e fui almoçar com o João Garcia a um restaurante japonês ao pé do antigo BES, símbolo de outro tipo de avalancha.
João Garcia, esse mesmo, o maior alpinista português de sempre, o homem biónico, o tipo inacreditável que escalou - sem oxigénio artificial e sem a ajuda de sherpas, os carregadores de altitude - os picos mais altos da Terra. Na verdade, ele foi o décimo alpinista em todo o mundo a conseguir a proeza de ascender, sem os tais amparos, apenas à custa das suas pernas e braços e pulmões e vontade férrea, as 14 montanhas com mais de 8000 metros.
Esta proeza faz dele um super-homem, um extraterrestre. O João Garcia deveria hoje viver de rendimentos, maçando-se apenas a escolher Martinis (que recusaria) à beira duma piscina estupenda e à sombra de umas palmeiras - que o irritariam. Mas não. Aos 48 anos, deveria conseguir viver dos louros acumulados e das façanhas que alcançou. Mas como nasceu por estas bandas, permanece ainda hoje embrulhado na luta. Leva todos os anos clientes aos Alpes e ao Nepal, a África e aos cumes da América do Sul, através da agência Papa-Léguas. Onde há aventura em altitude, ele lá está, pontualíssimo.
O almoço - dois, na verdade
A subida ao cimo do Evereste não se faz de um fôlego. Estabelecem-se quatro campos base e é a partir daí, com várias subidas preliminares e regressos para aclimatar o corpo ao oxigénio rarefeito, que depois se dá o impulso final - uma caminhada dos 7900 metros até chegar aos tais 8848 que leva 12 horas, à vezes mais.
Neste primeiro almoço seguimos o método Evereste: não quatro, mas duas etapas. O João Garcia aceitou responder às minhas perguntas imberbes e à minha curiosidade desorganizada, mas eu não publicaria nada. Porquê? Não sei, pareceu apenas o mais avisado. Mas foi aí que logo combinámos o segundo almoço, marcado para o Darwin"s Café, o restaurante à beira-Tejo que fica na Fundação Champalimaud, em Lisboa.
Ao primeiro encontro, embora ele viesse dos lados de Belém, o João chegou de bicicleta e estava mais fresco do que eu quando chegámos ao restaurante. Poderia contar algumas coisas desta primeira conversa, mas eu combinara não o fazer, embora tenha ficado com uma imagem viva a rodar na cabeça. No fim do sushi, apesar do dia temperado, o João aqueceu as mãos à volta da chávena de café como se estivéssemos os dois em alta montanha a conversar ao relento, a imaginar o cume. Não lhe disse nada, seria tremendamente parvo. Caramba, senti-me um puto no cinema.
No segundo almoço, eu já estava mais composto e o João pareceu-me um pouco mais magro. "Sim", disse-me enquanto olhava concentrado para o menu. Perdera dois quilos nos trekkings que fizera com clientes portugueses, entre abril e maio, no Nepal, concretamente através do vale do Khumbu, berço dos sherpas e ponto de partida para estas montanhas assombrosas. Sentados no Darwin, na sala interior e não na esplanada que se enchia de decotes vertiginosos, o João parecia mais tranquilo, como se os dois meses no Nepal tivessem sido um regresso à casa que o completa.
"Fiz três circuitos de 169 km cada um. Doze dias de caminhada com cada grupo. Também não é assim tanto quilómetro, embora só no fim o diga aos clientes... São para aí uns 14 km por dia." Olhos ainda pregados no menu, sem ligar à confusão que se instalava à nossa volta, camisa North Face aberta no colarinho, o João opta por um risotto d"alheira com ovo estrelado e uma água para acompanhar.
Vinho branco, não? "Não bebo."Eu escolho um spaghetti preto com polvo assado, molho de tomate e coentros, mas também um Douro, tinto, para olear a conversa e apanhar mais depressa os detalhes. Cada um tem o seu dopping. Talvez nem fosse preciso vinho, a conversa revelou-se bem melhor do que a comida.
O João, sempre naquele seu ritmo metódico, sem pressa, ia partir logo no dia seguinte para Chamonix, onde o esperavam dois clientes portugueses para fazer mais um trekking alpino. Mas é do Nepal que ele me quer falar e eu não me oponho, pelo contrário, estimulo.
- Essas pessoas que fazem os passeios de três semanas contigo estão em forma? Que idade têm elas? Quer dizer, não deve ser nada fácil aguentar...
"São pessoas de 30, 40, 50 anos. Não são alpinistas, mas estão em razoável forma e têm o apoio dos meus sherpas. São eles que carregam os mantimentos, isso facilita muito a coisa, torna isto possível", explica-me demoradamente, detalhando todos os aspetos.
"Antes da viagem faço um briefing em Lisboa. Levo o meu equipamento e ponho tudo em cima da mesa. "Olhem, [para] a primeira camada: eu vou levar esta camisola. É sintética, é boa por isso mesmo - quando a pessoa transpira, depois facilmente seca. A segunda camada: vou levar isto assim. Estas são as minhas calças de trekking, estas são as minhas calças de Katmandu, estes vão ser os meus calções de Katmandu. Vou levar umas chanatas, vou levar uns ténis, para a viagem. Preciso de três bagagens: uma é a mala, uma Samsonite, digamos assim, que fica no hotel em left luggage, com uma muda de roupa lavada. Não vai para a montanha para dar uma volta e depois voltar, não é? A segunda é a mala do carregador. E atenção que ela vai andar às costas de um carregador. Quer dizer que vai regressar para casa a cheirar a transpiração do carregador...
- Chiça!, digo-lhe, torcendo o nariz, à menino da cidade.
O João tem a dose certa de marketing, nem demasiado agressivo nem descuidado. Ele sabe contar uma boa história, e sabe que cliente feliz, é cliente que volta ou espalha a palavra. E como hoje vive disso, faz questão de executar bem o trabalho.
"Portanto, digo-lhes: não comprem uma mala assim muito luxuosa, não vale a pena. A terceira [mala] é a nossa mochilinha, com o básico. Não sou muito exigente quanto ao material. Aos mais impacientes, e há sempre alguns que querem comprar brinquedos novos, gadgets, digo-lhes: "Não penses num casaco para usares no Nepal, pensa num casaco para usares aqui em Portugal, no inverno. Pensa dessa forma." Ah, mas o meu saco-cama é muito fraquinho. "Está bem. Não tens dois sacos-cama muito fraquinhos? Leva os dois. Quando um não chegar, usas também o outro. Portanto, não comprem um saco-cama de zero graus para estarem confortáveis no único dia em que é preciso..."
A caminhada
Os dias são passados a andar, etapas de três horas que dão cabo dos glúteos. O treino nas passadeiras, no ginásio, ou a correr sem elevação, feitos nos meses antes da partida para Kathmandu, não exercitam os músculos que os socalcos de pedra vão maltratar. João Garcia está atento aos companheiros de viagem; às lesões musculares, que podem acontecer, em regra sem gravidade. Mas acima de tudo à aclimatação ao ar rarefeito.
As noites são passadas em lodges, em quartos duplos, embora haja quem escolha pagar um individual. À medida que se vai subindo, a qualidade da oferta vai decrescendo. "Os pratos e as doses de comida começam a reduzir-se, os preços começam a subir e o próprio espaço por quarto, a própria construção... Lá para cima, a cinco, seis dias da estrada mais próxima, tudo encarece: os materiais de construção encarecem, temos de nos habituar."
O João devora o prato, eu vou remexendo no meu. A comida, claro, como é em viagem? Imagino que comam lentilhas, o prato nacional dos nepaleses, não é?
"O primeiro grupo que levei teve algum galo porque a nossa alimentação depende do que há: se há mais vegetais, se há mais carne... O primeiro grupo esteve para aí cinco dias sem ver carne. E havia aqueles que começavam: "Mas não há carne!? Não há carne!?" Tive de usar da minha melhor argumentação: "Pois, a carne às vezes vem, às vezes não vem." Mas não é que o grupo ao lado do nosso estava a comer carne? [Risos]. Fiquei, tipo, sem argumentação. E aí até me chateei lá com os fulanos do lodge. São coisas que acontecem."
Viajar com o João Garcia pelas montanhas do Nepal é viver um pedacinho da experiência que é escalar um cume a sério. Todos os dias, há uma espécie de exame físico individual. "O meu protocolo é simples: cinco minutos sentado com o dedo debaixo do sovaco, para tirar a temperatura da pele em condições idênticas, em repouso, pelo menos, durante cinco minutos. Não é vir a correr "ai, ai, ai!" . Chegam ofegantes e não dá. Portanto, faço uma quadrícula com as etapas, as pessoas nas colunas verticais e vou escrevendo todos os dias. OK, começamos todos com certos níveis que vão descendo. Se descerem abaixo de certo limite, aí começa a ser preocupante. Mas raramente acontece."
Ver o Evereste ao longe é o ponto mais desejado do trekking. Durante as caminhadas ou já à noite, as conversas confluem naturalmente para aí. As perguntas sobre o Evereste, sobre as passagens mais difíceis e sobre a mercantilização da montanha fazem parte do pacote. João Garcia sabe que as pessoas valorizam isso e ele não se chateia de ter de contar os episódios pela milionésima vez. Isso e as fotografias para o Facebook com o Everest em pano de fundo. "Não falha, todos querem e eu gosto de ver as pessoas empenhadas e satisfeitas, respeitando as montanhas e os nepaleses." Para o ano, não falho, digo-lhe, revelando uma última ambição: ajudá-lo a montar uma última expedição, a que ele agora mais deseja - a travessia do Evereste do lado chinês para o nepalês. Para o ano vemos se consegui.
darwin"s Café
› Uma água
› Um copo de vinho tinto
› Risotto d"alheira com ovo estrelado
› Spahetti preto com polvo estufado
› Dois cafés
Total: 38,6 euros