Almirante Reis. O que fazer com esta avenida?

A ciclovia veio relançar o debate sobre a Almirante Reis. Carlos Moedas fala agora numa solução a curto prazo para a ciclovia e numa remodelação profunda da avenida a longo prazo. "Parente pobre" das grandes artérias lisboetas, o que cabe nos estreitos 25 metros da avenida?
Publicado a
Atualizado a

Uma avenida com um "trânsito intensivo" que justificaria o "condicionamento dos logradouros a estacionamento privado dos prédios", conseguindo-se assim "uma sensível melhoria das condições de trânsito pela supressão de circulações erráticas". Serão, aliás, de ponderar as "desvantagens" de mais comércio na zona, pelas implicações que isso terá no trânsito.

As observações constam de um relatório da Câmara Municipal de Lisboa, mas não são nem do atual mandato de Carlos Moedas, nem do anterior, de Fernando Medina. Na verdade estas palavras têm 63 anos: foram escritas em 1959 pelo Gabinete de Estudos de Urbanização da autarquia, num dos muitos estudos e pareceres que, ao longo de décadas, foram tentando encontrar soluções para uma via que é quase sempre descrita como caótica e congestionada. Mais de meio século passado, a discussão não se alterou muito: o que fazer com a Avenida Almirante Reis continua a ser motivo de discussão, como demonstrou a última campanha eleitoral autárquica.

A Almirante Reis é a avenida (com natureza residencial e de serviços) mais extensa de Lisboa (2, 8 quilómetros), mas tem uma outra especificidade: é particularmente estreita, com 25 metros de um lado ao outro. "É única. Por muito boa vontade que tenhamos, não é comparável a outras, como a Avenida da República", sublinha Filipa Ramalhete, uma das coordenadoras do Atlas Almirante Reis, livro que resultou de um trabalho universitário que cruzou várias disciplinas e que lança um amplo olhar sobre a história, a arquitetura ou a geografia humana da avenida. E também sobre a mobilidade. "Quando fizemos a pesquisa lemos documentos de há cem anos que já diziam que havia muito trânsito, problemas com as cargas e descargas. A questão da pressão não é uma novidade, já existe há muito tempo", diz Filipa Ramalhete, sublinhando que a mais atual discussão em torno da ciclovia é só "mais um assunto, uma camada que se vem acrescentar à discussão".

Surgida da necessidade de ligação do centro à zona norte da cidade, então ainda arrabaldes rurais, com uma função de abastecimento e uma forte ligação a atividades comerciais, a Almirante Reis "foi sempre o lado pobre da cidade", com um crescimento mais orgânico que projetado. "Desde a sua raiz não é uma avenida que tenha tido muita intervenção pública, resultou desde o início de iniciativa privada - não da grande iniciativa privada, mas daquela transformação lenta que ocorre ao longo das décadas nas cidades. A intervenção pública foi tentando resolver algumas questões", conta a investigadora. Por exemplo, os pisos térreos recuados, com galerias, que se encontram sobretudo na parte central da avenida, são resultado de um "despacho específico da câmara para a avenida, em meados do século XX, para criar mais espaço público e de circulação". Apesar disso "aparentemente a avenida vai-se ajustando, é resistente e acaba por não haver uma descontinuidade muito evidente".

Filipa Ramalhete sublinha também um ponto de que pouco se fala quando se discute a Almirante Reis: toda a questão da envolvente. "Falamos muito do problema da avenida, mas há questões muito diferentes mesmo nas acessibilidades à envolvente e nas lógicas de mobilidade. Por exemplo, na zona do Bairro Andrade ou do Bairro das Colónias, que são zonas muito populosas, as necessidades de circulação são bastante diferentes de outras zonas, a ligação ao Saldanha, às Avenidas Novas, é muito mais suave. Da Praça do Chile para o Areeiro já é outra realidade. Se calhar é preciso um olhar mais focado, quase quarteirão a quarteirão", diz Filipa Ramalhete.

A Avenida Almirante Reis voltou ao centro da discussão política por causa da ciclovia instalada na artéria pelo executivo de Fernando Medina, e que se tornou numa das principais críticas de Carlos Moedas, que durante a campanha eleitoral prometeu retirar a ciclovia. Cinco meses passados sob a tomada de posse, o presidente da Câmara de Lisboa diz estar a estudar alternativas, mas avançou entretanto um outro enquadramento: mexer na ciclovia num primeiro momento; fazer uma intervenção de fundo na avenida, a longo prazo. "Precisamos de repensar a Almirante Reis. Precisamos de duas faixas, precisamos de conseguir no fim deste mandato duas ciclovias, mas com duas faixas de cada lado. Isso era o sonho", disse Moedas, há cerca de um mês, sublinhando que "gostava de deixar como legado uma Almirante Reis que as pessoas sentissem como uma Avenida da República ou uma Avenida da Liberdade", porque o que "lá está não é bonito nem agradável".

Recentemente, a Junta de Freguesia de Arroios promoveu encontros com a população, os comerciantes e associações cívicas para ouvir o que cada um defende para a Almirante Reis. Nos encontros esteve presente o arquiteto paisagista João Castro, em representação do município, que apontou os mesmos objetivos já descritos por Moedas, somando-lhe mais arvoredo, numa avenida que chega a registar mais cinco graus que as artérias próximas.

Comportará a avenida duas faixas de rodagem para cada lado, além da ciclovia e do espaço pedonal? Fernando Nunes da Silva, professor catedrático em Engenharia Civil, especialista em transportes e urbanismo, diz que a Almirante Reis sempre foi o parente pobre das avenidas de Lisboa, uma "espécie de traseiras da parte central da cidade", que "nunca foi tratada como as outras avenidas". Nunes da Silva (que foi vereador da mobilidade e transportes na CML, no mandato 2009/2013, pelos Cidadãos por Lisboa) defende que se devia reabilitar a artéria e dar-lhe "a dignidade de uma avenida central de Lisboa", tendo presente que "para quem vem do lado oriental a única ligação às avenidas Novas é a Almirante Reis ou a Afonso III", pelo que é "absolutamente essencial" que a Almirante Reis mantenha duas faixas de rodagem no sentido Baixa/Areeiro: "Reduzir o tráfego na via ascendente da Almirante Reis é muito complicado". Já a via descendente poderia ter apenas uma faixa de rodagem, abrindo assim espaço a uma "ciclovia com dois sentidos" - tal como está resultou num "pandemónio". Já a eliminação do estacionamento ("criando alternativas, como se fez nos extremos da Avenida da Liberdade") abriria a hipótese de alargar passeios, sustenta Nunes da Silva, defendendo que esta solução "poderia acomodar" as várias necessidades.

Para Miguel Gaspar, vereador da mobilidade no anterior executivo (e atual vereador sem pelouro da CML), não há solução possível que permita acondicionar na Almirante Reis quatro faixas de rodagem, mais duas ciclovias, espaço pedonal, estacionamento e mais arvoredo. "Não tenho nenhuma dúvida de que o sítio mais fácil para pôr a ciclovia, em teoria, era tirar o estacionamento de um dos lados da Almirante Reis, pôr aí a ciclovia e deixar o resto mais ou menos como estava. Mas o que é que está na zona do estacionamento da Almirante Reis? Árvores de grande porte, "n" lugares de cargas e descargas e tomada e largada de passageiros, que são essenciais para a atividade económica da avenida. Tem as bocas de ventilação e as próprias escadas do metro. Portanto, aquilo que é o "sonho" do senhor presidente - a palavra é dele - simplesmente não cabe na avenida. Não é possível ter uma largura de passeios aceitável para aquilo que é o tráfego pedonal, juntar-lhe uma ciclovia, duas vias por sentido, uma boca de metro, e já não falo do separador central, que tem quase 200 árvores", diz Miguel Gaspar, acrescentando que esta seria uma obra de quatro ou cinco anos anos e de "vários milhões de euros".

Salientando que "67% dos carros que passam na Almirante Reis não param, atravessam a avenida", Miguel Gaspar diz que é preciso "trazer para cima da mesa o debate da Baixa" e avançar com "soluções de mitigação do trânsito na Baixa" que permitam diminuir o número de veículos que usa a Almirante Reis: "Nós não conseguimos mudar os edifícios de sítio. A avenida tem a largura que tem, é um espaço curto, complexo, onde temos que fazer opções".

O DN tentou ouvir a Câmara de Lisboa sobre o projeto a longo prazo para a avenida, sem sucesso.

susete.francisco@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt