São os trovadores que cantam o amor em primeiro lugar, da mais violenta paixão ao adultério. A história da correspondência amorosa fala-nos desse universo ao longo dos tempos. Nesse contexto, as cartas de Garrett à Viscon- dessa da Luz, que acaba de publicar no Brasil, são uma pérola da escrita, contextualizando o diálogo entre o desejo e a possibilidade ou imaginação de um amor absoluto?.Sim, Garrett dá expressão literária a esse ideal de amor, ao mito do amor, à suposição de que seria possível um amor em que nada faltasse. E há também, em Garrett, um conflito entre amor e desejo sexual. Em alguns momentos, esse conflito parece ser suspenso numa espécie de regime de excepção, como no poema Cascais. Mas, a meu ver, só parece. É o que procuro mostrar na introdução que faço ao volume das cartas à Viscondessa..Nesta obra - edição crítica rigorosa, enriquecida por um prefácio esclarecedor - revelam-se, nos 50 anos da edição do açoriano José Bruno Carreiro, as 22 cartas restantes de uma ardente correspondência da qual só conhecemos um lado, o de Garrett. Que mulher era esta, Rosa Montufar Barreiros, casada, e que a uniu ao autor de Folhas Caídas?.Gomes de Amorim, que leu as cartas de Rosa a Garrett, diz-nos, nas.Memórias Biográficas (1881-1884), que era «uma mulher de espírito». Também nos faz vê-la nas feições da Ester de O Arco de Sant'Ana. Amorim e outros referem-se a Rosa como uma mulher de beleza invulgar. Podemos conhecer um pouco mais desta figura nas cartas de Garrett: preocupada em manter o segredo daquele amor, cansada dos saraus aos quais, por vezes, relutava em comparecer, nem sempre correspondendo às demandas de amor de Garrett. Não diria que era uma mulher à frente de seu tempo. Nem sei se isso seria possível..Que é feito da correspondência de Rosa para Almeida Garrett? As cartas não escaparam à destruição?.Amorim relata, em Memórias Biográficas, que queimou perto de cem cartas de Rosa a Garrett. E que restituiu-lhe perto de trezentas. Não é, de todo, impossível que estas cartas de Rosa a Garrett ainda apareçam..Trata-se de um amor que aparentemente termina em maior perda para Garrett que, na última e pungente carta, escreve a Rosa: «Sentes vivamente tão vivamente que logo te cansas; é preciso mudar de estímulo. O teu coração não muda facilmente, bem sei, mas cansa-se de sentir sempre o mesmo.» Esta é uma radiografia de uma mulher volúvel?.Essa é a versão final de Garrett. E de certo modo a versão moralista que passou à posteridade. Gomes de Amorim escreve que os poemas de Folhas Caídas nasceram de uma «chama impura». Ferreira Lima narra a morte de Garrett, às 18. 25 do dia 9 de Dezembro de 1854, supondo que naquele momento a inspiradora das Folhas Caídas perfumava-se, adornava-se, enfim, preparava-se com todo o requinte para ir ao São Carlos divertir-se. Creio mesmo que este moralismo passou à crítica de Folhas Caídas, que às vezes lê o livro como um «palpitar de carnes». Em tudo está subentendida a ideia de que Garrett foi envolvido por uma «mulher indigna»..Esta correspondência amorosa acrescenta algo à biografia de Almeida Garrett, ou considera-a, sobretudo, parte da história literária?.É difícil, do ponto de vista factual, acrescentar algo à biografia de Garrett. Está tudo no Gomes de Amorim. Talvez a leitura que faço das Folhas Caídas, em íntima conexão com as cartas de Garrett, traga um dado interpretativo novo à biografia de Garrett. À história literária sim, acrescenta-se um dado que nos ajuda a compreender a concepção de amor da obra de Garrett. Eu acrescentaria, entretanto, que temos aqui também um importante documento para a história das ideias do século XIX..A literatura epistolar distingue-se mal, a seu ver, de outros géneros literários, em particular da poesia?.Não acho que as cartas do Garrett à Viscondessa sejam literatura. Isso não significa que não haja algo de literário nelas. O que precisamos de ver é que estas cartas não foram escritas como uma obra de invenção literária. Mas é claro que um artista da palavra como Garrett não deixaria, fosse ou não fosse esse o seu intuito, de ali colocar pelo menos uma parte da sua arte. Tal não acontece no caso que importa aqui referir, o de Folhas caídas, obra escrita para ser publicada, portanto, uma transposição que tem como suporte e filtro a invenção..As cartas de Garrett são escritas com ardência e sangue. Não as considera um exercício de estilo, trazendo à memória e comparando com os casos Heloísa/Abelardo, Soror Mariana/Chamilly, George Sand/Alfred Musset?.Depende do que entendemos por «exercício de estilo». Se vemos nisso mero artifício, dandismo, frivolidade, então não. Garrett é um escritor de muita verdade. Ele está em tudo que faz. Lembremo-nos, a esse propósito, da citação de Boileau que aparece em Viagens na Minha Terra: «só a verdade é bela»..Agora, que Garrett tem um estilo todo seu, isso tem. Mas não para enganar. Pelo contrário, é assim que pode pôr por escrito a sua verdade singular sobre a vida e os homens..Só cem anos depois da morte de Garrett, José Bruno Carreiro publica as cartas na única edição portuguesa (1954). Apesar dos seus méritos, altera o texto de Garrett, nomeadamente a paragrafação, a pontuação pessoalíssima, transcreve erradamente palavras. Que distingue as duas edições?.Bem, a edição de Carreiro tem méritos. Um deles é a ordenação que faz das 22 cartas. As anotações que faz também têm interesse. Entretanto, é preciso dizer que Carreiro «poliu» as cartas de Garrett, adaptou-as de certo modo para uma recepção mais fácil, o que era um hábito dos editores da época em que saiu o livro (1954). E em alguns casos cometeu erros mesmo. Eu procurei manter, na minha edição, a pontuação e a paragrafação de Garrett, não actualizei os termos de época, recompus os enganos e lapsos da transcrição de Carreiro. Além disso, acrescentei notas que esclarecem muito a situação política da época, referida vagamente em alguns trechos da correspondência. Procurei dar ao leitor ainda uma ideia da organização de cada carta no papel. E na introdução, além das informações biográficas, fiz uma leitura interpretativa das cartas, conforme já referi, em conexão com as Folhas Caídas..Que critérios utilizou na organização desta nova edição da 7 Letras, cuidadosamente anotada e ilustrada?.Os critérios da edição das obras completas de Garrett que começam agora a sair pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, edição esta sob a coordenação da Professora Ofélia Paiva Monteiro..Para quando a edição desta correspondência em Portugal e em que moldes?.Espero que a edição portuguesa saia em 2005. Vim a Portugal para divulgar a edição brasileira que acaba de sair no Rio de Janeiro e para tratar da edição portuguesa. Tudo indica que retornarei ao Brasil com isso resolvido..Se há algo de interessante nesta edição é a correlação biográfica entre as cartas, sobretudo na temática do amor, e Flores sem Fruto, Viagens na Minha Terra e Folhas Caídas, no qual culmina o romance e a que se seguirá a morte de Garrett....Também isso me interessou muito, quando, por exemplo, próximo do rompimento, Garrett diz-lhe numa das cartas «tu não me amas, Rosa, queres-me», invertendo a abertura do poema Não te amo. Ou mesmo, numa passagem também das mais lindas, quando se refere ao fim da relação... Algo do tipo: caídas as pétalas, caídas as folhas, resta-me nas mãos uma haste com espinhos. Como não nos lembrarmos do título do volume Folhas Caídas? .Há, nesta correspondência, um código de comunicação entre os amantes. Como eram escritas as cartas?.Em escrita cruzada. Isto é: com linhas atravessadas umas sobre as outras. Na maior parte dos casos, linhas verticais cruzando sobre linhas horizontais. Mas há também páginas com linhas transversais cruzando sobre linhas horizontais..O romance entre Rosa e Garrett deu escândalo no Portugal oitocentista. Em que medida, também no assumir do erotismo a que Gomes de Amorim apelida de «chama impura»?.Sim, claro, acho que se o romance ficasse no âmbito do que à época se considerava «adultério elegante», não haveria grande problema. O caso talvez tenha ganhado uma proporção inquietante com a publicação de Folhas Caídas. Nele encontramos a pergunta: «Anjo és ou és mulher?» Esta questão, que parece ter inquietado o poeta, talvez tenha deixado também intranquilos alguns corações lisboetas do século XIX. Digo isto porque, em princípio, tudo indica que aquela sociedade sabia muito bem o que era uma boa senhora (anjo, mãe, esposa) e, em contraposição, o que era uma mulher indigna. Almeida Garrett lançou o enigma..Não lhe parece excessivamente moralista a visão de Gomes de Amorim (principal biógrafo de Almeida Garrett), sobre este caso amoroso e consequentes implicações na obra, chegando mesmo a dizer, apesar da admiração nutrida por Folhas Caídas, que teria preferido que o autornão as tivesse produzido?.Sim, e esse moralismo passou também para parte da crítica. É o que mostro também neste meu livro acabado de editar..Segundo Hernâni Cidade, as páginas de Flores sem Fruto e Folhas Caídas são o canto do cisne do poeta, brotadas de um coração em desvairo e de eróticas labaredas. Como vê este homem das letras portuguesas? Actual ainda hoje?.Folhas caídas é um livro excepcional em muitos e variados aspectos. Comparem-se, por exemplo, os poemas que o integram com os demais poetas contemporâneos de Garrett. A dicção é outra. Um leitor daqueles que havia antigamente diria: Garrett vai directo ao coração. Isto é: sem pompa, sem floreios, sem véus, sem artifício. Qualquer um sabe que escrever prosa ou poesia de modo simples e directo, sem ser banal, é dificílimo. E Garrett fá-lo. Mas, além disso, o escritor também nos fala de sentimentos humanos que pertencem a todas as épocas. Ainda hoje alguém pode ler o Não te amo e, no fim, pensar: eu também já senti isso algum dia... Garrett dá expressão a algo que é de todos nós, embora alguns tenham superado com maior ou menor sucesso, a dificuldade de unir as duas correntes: a afectiva e a sensual, do modo como Freud as apresenta no seu conhecido ensaio intitulado Contribuições à Psicologia do Amor.