Almanaque perpétuo

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Abraão Zacuto (1450-1522), rabino, astrónomo, matemático e historiador, fez publicar em Leiria no início de 1496 o célebre Almanaque Perpétuo, que demonstra a qualidade excecional do homem de ciência - conselheiro de D. João II e de D. Manuel, num momento alto de cooperação de saberes de que as navegações portuguesas beneficiaram decisivamente. A ele se deve o aperfeiçoamento do astrolábio e a opinião favorável que deu para a viagem à Índia. Mesmo assim foi uma das vítimas da expulsão do povo judeu, não lhe valendo a muita admiração que lhe votaram os reis de Portugal e o progresso científico que tornou possível. Zacuto é um exemplo do método do planeamento rigoroso que permitiu a definição das missões marítimas e os seus importantes resultados, longe de qualquer improviso ou cedência ao curto prazo.

Num ano tão atípico e com tantas incertezas como foi o de 2021 vale a pena lembrarmos o exemplo do Almanaque, como repositório de informações e conhecimentos. Como disse o nosso Eça de Queiroz: "O tempo, essa impressão misteriosa a que chamamos tempo, é para o homem como uma planície sem forma, sem caminho, sem fim, sem luz, onde ele transita guiado pelo almanaque que segura na mão que o vai puxando e a cada passo murmurando: aqui está setembro!... além finda a semana" (...). Só com o almanaque sempre presente e sempre vigilante pode existir regularidade na vida individual ou coletiva e sem ela... o que era seriedade seria apenas uma horda e o que era um cidadão seria apenas um trambolho."

E lembramos o O Verdadeiro Almanaque Borda d'Água - Reportório útil a toda a gente para 2022 - "Contendo todos os dados astronómicos e religiosos e muitas indicações úteis de interesse geral". O que hoje se publica pela Minerva vem de 1929 e está na edição 93, mas teve como antepassado o da Barateira, com a mesma utilidade. Recordo-me do cuidado que meu avô Mateus punha na consulta desse instrumento fundamental. Havia muitas anotações e pode dizer-se que o conhecimento da vida útil dependia dessa íntima ligação. Neste ano atípico com tantas incertezas, lembrei-me de Voltaire, do seu Cândido e da necessidade de sabermos cultivar o nosso jardim, só possível com a ajuda do Almanaque... Folheando o Borda d'Água, ficamos a saber muitas coisas, entre as quais que em janeiro se preparam as culturas de inverno, como a da batata, ou que a poda é aconselhável no quarto minguante, apesar de a não devermos fazer nas figueiras, laranjeiras e macieiras, nas quais os grandes cortes são agora prejudiciais. Mas se pensarmos em enxertos, estes estão na altura certa no crescente, do mesmo modo que a semeadura de fava, ervilha, alface e rabanete.

Se os hortelões são os destinatários de tão ajuizadas orientações, os jardineiros são aconselhados a plantar begónias, ervilhas-de-cheiro, gipsófilas, girassóis, lírios, paciências, sécias, zinias, goivos e miosótis. As indicações são as mais diversas à medida que percorremos os dias. E não falta a sabedoria popular: "Tudo perde quem perde o bom momento"; "Falar sem pensar é atirar sem apontar"; "Antes escorregar o pé que a língua" ou "A inveja consome o invejoso como a ferrugem o ferro"... E não falta o "Juízo do Ano", que nos é proposto pelo Borda d'Água e pela sabedoria omnipresente da sua cartola. São reflexões atinadas, infelizmente mais esquecidas do que as referências às culturas de época ou a podas, enxertias, cortes e sementeiras... E quais os melhores ensinamentos, normalmente recorrentes? A prevenção e o cuidado (que a pandemia aconselha), o aproveitamento do tempo, o não desperdício, o trabalho e a aprendizagem. E as longas séries matemáticas de Abraão Zacuto ensinam, no fundo, que não há resultados sem a audácia de ver longe.

Em memória de João Paulo Cotrim

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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