Alkantara: um festival para nos encontrarmos no mundo

<p style="margin-bottom: 0cm">1<em>8 dias para celebrar 25 anos de Alkantara com </em><em>22 espetáculos de artistas de quatro continentes em sete espaços lisboetas.</em>
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Esta noite, quando as bailarinas, cantoras e atrizes de Bouchra Ouizguen encherem os jardins do Castelo de S. Jorge de sons e gestos que mais pertencem aos pássaros do que às gargantas e corpos de gente, ouviremos também o motor do Alkantara 2018 a arrancar. O espetáculo Corbeaux (corvos) junta intérpretes portuguesas às de diferentes gerações da companhia da coreógrafa marroquina (artistas oriundas da tradição de cabaret que vimos em Madame Plaza , na edição de 2012) e convoca rituais tão estranhos quanto familiares para atingir um corpo coletivo e um estado que é universal, íntimo e presente - o transe ritualista ancestral a ecoar naquele que a dança pode espoletar numa discoteca, por exemplo. Marca também, fora dos palcos convencionais, o início das celebrações de 25 anos na vida de um festival crucial para o panorama artístico e cultural atuais, que ultrapassa fronteiras de disciplinas e geografias.

Fundado por Mónica Lapa (1965-2001), coreógrafa e bailarina cuja visão espelhava o inconformismo de uma geração sem lugar para apresentar a sua pujante criação, o então Danças na Cidade aconteceu pela primeira vez em 1993, na Central Tejo (onde agora se instala o MAAT) e estabeleceu-se pela mão do programador Mark Deputter (atual director da Culturgest) enquanto bienal de artes performativas, internacional, contemporânea e interdisciplinar - o Alkantara festival (face visível da associação e espaço com o mesmo nome, centro nevrálgico das artes em Lisboa). O desenho da programação que é o último assinado por Thomas Walgrave (fundador dos tg STAN e criador dos espaços cénicos dos espetáculos do coletivo belga, entre outros) que, ao fim de uma década na direção artística do festival, regressa em pleno à sua prática artística e passa o testemunho a Carla Nobre de Sousa e David Cabecinha, uma nova geração de programadores com trabalho já feito no festival (e não só).

A história destes 25 anos é intensa e está inscrita na imagem deste Alkantara. A partir de um trabalho quase arqueológico desenvolvido pela equipa, a designer Ana Teresa Ascensão põe em marcha um programa gráfico que usa a memória física do festival para desenhar os materiais desta edição: na letra miudinha que atravessa o cartaz e o programa há uma corrente de milhares de palavras em nome próprio, declarações de intenção dos programadores, reflexões críticas e, sobretudo, testemunhos dos artistas cujas obras foram dando corpo ao festival, com as questões que os atiraram para as peças. É um arquivo vivo que torna visível o chão em que assenta o programa que agora começa, mas é preciso estar disponível para o que é difícil de ler, coisa que ressoa no potencial dos espetáculos propostos, capazes de intensificar a nossa experiência do mundo e de nós próprios.

Um festival é um lugar para pensar o mundo

"O Alkantara não seria o que é se não utilizássemos este momento de celebração e comemoração para olharmos para nós próprios e questionar o que estamos a celebrar", começa por dizer Thomas Walgrave. "A linha da programação não pretende ser uma seleção do melhor que está a ser feito no mundo, agora, é principalmente uma história de encontro e um encontro ao longo de um percurso. Olhando especialmente para estes 10 anos, os que conheço melhor, acho que avançamos no diálogo entre públicos e artistas, que tem a ver com a coragem de uns e de outros de arriscar na complexidade das linguagens artísticas e na capacidade de compreender os códigos também. Estes públicos e estes artistas falam por si e entre si". Aqui a curadoria é mais uma questão de mediação do que de autoria e há um gesto político que lida com questões além da ordem do estético ou do entretenimento, propondo interrogações mais do que exclamações. "Porque é que alguém hoje em dia faz teatro/dança/artes performativas? Há uma necessidade de estar ao vivo, no confronto direto com o público. Estas propostas de teatro-dança enquanto gesto que é também do espectador, resulta em espetáculos que partem, não da força da ilusão do teatro, e sim da força dessa relação com o público: o público olha para si próprio ao olhar para aquilo que está a ver", reflete o curador. São vários os exemplos ao longo da programação, eis alguns: Cláudia Dias, que em Quarta-Feira: O tempo das cerejas (Maria Matos Teatro, 7 a 9 junho) encontra Igor Gandra (Teatro de Ferro), para a terceira parte do seu projeto Sete anos, sete peças ou Kornél Mundruczó (que regressa a Lisboa com Imitation of Life , TNDMII, 1 e 2 junho) ou da "Artista na Cidade" Christiane Jatahy ( Ítaca - Nossa Odisseia I , São Luiz Teatro, 7 a 9 junho) que toma o aqui e agora enquanto alicerce da prática artística, exponenciando o desejo de intervenção, pessoal e política, e interrogando constantemente a qualidade da nossa cidadania e das suas próprias práticas. "A dança dos anos 90 é menos sobre a certeza do movimento do que sobre o absurdo da existência. (...) Ela diz mais do horror dos tempos do que da fantasia dos sonhos. Daí a sua beleza", escreveu o investigador e crítico de dança André Lepecki no editorial do primeiro Danças na Cidade. Três dos artistas presentes nessa edição (e que várias vezes regressaram ao Alkantara) apresentam agora novas criações: Aldara Bizarro estreia Gráfico do Gesto , trabalhado em colaboração com alunos e professores da Escola Artística António Arroio; Vera Mantero, em As Práticas Propiciatórias dos Acontecimentos Futuros , encontra os materiais e questões levantados pelo artista multidisciplinar Ernesto de Sousa (1921-1988) no mapeamento da escultura popular em Portugal; e João Fiadeiro, com From afar it was an island ( TNDMII, 6 a 8 junho ), trabalha numa espécie de raccord coreográfico a partir de uma base cinematográfica, abrindo novos caminhos. Um festival é um local de encontro para pensar o mundo em que vivemos e neste reencontramos criadores que nos foram fazendo felizes e nos desinquietaram, como Sofia Dias &amp;Victor Roriz, Bruno Beltrão, Toshiki Okada, o colectivo El Conde de Torrefiel, ou ainda Antoine Defoort que, ao longo desta última década não tem cessado de nos surpreender com a imensa e hilariante inteligência dos seus espectáculos. E depois há o lugar da descoberta: Jeannot Kumbonyeki, Zina Zarour, Jozef Wouters, Wagner Schwartz, Flora Détraz ou Sofia Dinger são novos criadores que é urgente encontrarmos. (programa completo em www.alkantarafestival.pt)

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