Ali há gato
A curiosidade não matou o gato, mas matou o dono do gato.
Vemo-los aos dois, o gato e ele, e mais ela, imortalizados numa grande tela, toda pintada a acrílico de cima a baixo. São mais de dois metros de altura por três de comprimento (em milímetros, 2170 x 3084) a preencher uma parede inteira da galeria Tate Modern, Londres. Tudo o que vai na tela - a mulher, o homem, o gato e o acrílico - é obra do grande artista David Hockney, que, apesar da provecta idade (nasceu em 1937), continua a criar bem e a bom ritmo: ainda há dias escreveu uma carta aberta aos seus admiradores de todo o mundo, que são muitos, com palavras especiais para o povo francês, já que é lá que reside agora, vindo da Califórnia há um par de anos. É na Normandia que está confinado, mas jamais parado: no dia 21 de Março, no eclodir da Primavera, ofereceu aos seus concidadãos um desenho efusivo e terno, bem ao seu estilo, de um ramo de junquilhos, feito num iPad, actualmente o seu instrumento de trabalho dilecto. Provocador incorrigível, chamou-lhe Do Remember They Can't Cancel the Spring.
Voltou a atacar mais recentemente e, no passado 16 de Abril, divulgou na rádio France Inter um tocante manifesto em que falou do vírus que para aí anda, "louco e incontrolável". Disse que muitos lhe escrevem palavras doces, agradecendo-lhe a arte e a trégua que ela traz a estes dias impensáveis, de tantas provações e nada mágicos cansaços. Quase ao chegar aos 83 anos, David Hockney reconhece sem problemas que em breve enfrentará a finitude terrena, mas o essencial e o mais belo da sua missiva é o inventário que faz das coisas para si importantes, a saber: "As pereiras, as macieiras, as cerejeiras e as ameixoeiras em flor, e também os pilriteiros e os abrunheiros."
Com tanto arvoredo, quase nos perdemos do essencial: ele, ela e o gato, nunca esquecer o gato. O acrílico, que, repetimos, é grande, foi pintado entre 1970 e 1971 e tem por título Mr and Mrs Clark and Percy, pois retrata o casal Clark com o seu gato de estimação que, como é óbvio, se chamava Percy. Hockney fazia retratos de casais, reais ou imaginários, desde os alvores dos anos 1960, com destaque para The First Marriage (A Marriage of Styles), de 1962, pintado numa altura em que já não era propriamente um desconhecido. No ano anterior, participara na célebre mostra Young Artists, que, diz-se, inaugurou a pop art britânica, corrente a que sempre recusou pertencer, mas onde o teimam em enfileirar.
No entanto, a grande consagração só ocorre pouco depois, em 1967, quando o seu quadro Peter Getting Out of Nick's Pool ganha o John Moores Painting Prize, da Walker Art Gallery de Liverpool, sendo também nesse ano que Hockney pintou uma das suas telas mais famosas, A Bigger Splash, que o imortalizou para todo o sempre como um grande pintor de piscinas, salvo seja. Há quem tente desvalorizá-lo dessa forma, ou de outras ainda piores, sem ter presente que David Hockney é um dos artistas do nosso tempo que mais se interessaram e mais estudaram os segredos da técnica de pintar e que Mr and Mrs Clark and Percy é um quadro aparentemente "fácil" e linear, mas que constitui um admirável e exigente exercício de pintura contre jour, em que os Clark se apresentam no seu quarto, ao natural, mergulhados numa atmosfera intimista e cálida, fornecida pela luz suave que uma janela derrama. Por outro lado, e mais decisivamente, Mr and Mrs Clark and Percy é um quadro que pretende retratar não duas pessoas mas a relação entre elas, e a tensão que paira no ar, contrastando com a delicadeza envolvente, é bem um reflexo da conturbada realidade conjugal de Ossie e Celia Clark, de quem Hockney fora padrinho do casamento celebrado dois anos antes, em 1969.
Não por acaso, Mr and Mrs Clark and Percy influenciou profundamente a fotografia do filme Kramer vs. Kramer, como é assumido pelo director de cinematografia dessa película de 1979 em que Dustin Hoffman e Meryl Streep encarnam um dueto em dolorosa ruptura, com ela a sair de casa e a regressar pouco depois para reclamar - e conquistar - a custódia do único filho do casal (Hoffman, que saíra há pouco de um atribulado processo de divórcio, teve intervenção de vulto na redacção do argumento).
Ao colocar na tela um casal à beira do divórcio, o quadro de Hockney contém diversas mensagens à clef, algumas delas bastante maldosas para o retratado masculino, Ossie Clark, um dos mais badalados designers e criadores de moda da Londres dos swinging sixties, então no auge da fama, mas já com sinais de declínio acentuado, e muitíssimo inclinado. Uma existência exuberante e trágica, coitado. Numa alfinetada picante, Hockney pôs na tela uma outra obra sua, explorando o ardil do picture within a picture, que já ensaiara em 1963 em A Play Within a Play e que tem antecedentes ilustríssimos na história da pintura, como San Lucas como Pintor, ante Cristo en la Cruz (1660), de Francisco de Zurbarán, e sobretudo Las Meninas, de Velázquez (que para tanto se inspirou em Van Eyck, um pintor também convocado para Mr and Mrs Clark and Percy, como já veremos).
Ora bem, que obra sua foi escolher David Hockney para meter dentro do retrato dos Clark? Uma gravura da série ARake'sProgress, feita em 1961-1963 em homenagem ao conjunto de águas-fortes com o mesmo nome que William Hogarth concebera em 1735. O pormenor decisivo, chave do mistério: A Rake'sProgress é a história da decadência de Tom Rakewell, o filho perdulário de um rico mercador que desbaratou a fortuna paterna na prostituição e no jogo, acabando encarcerado nas masmorras da Fleet Prison e, mais tarde, num asilo de loucos.
A comparação com Ossie Clark era demasiado óbvia para parecer despercebida e é tanto mais cruel quanto ele e Hockney eram amigos de longa data; conheceram-se em 1961, quando Ossie estudava no Manchester College of Art e, depois, foram ambos para o Royal College of Art, em Londres, onde se formaram com distinção: Hockney concluiu os estudos averbando uma medalha de ouro e Clark finalizou o curso em 1965 com um first-class degree, o único atribuído esse ano. No ano anterior, tinham viajado juntos até à América, sendo então que Hockney viu pela primeira vez o Grand Canyon, ao qual dedicaria obras colossais e vibrantes, como A BiggerGrandCanyon, feita a partir da justaposição de 60 telas, ou ACloserGrandCanyon, ambas de 1998.
No retrato dos Clark, a par de um telefone branco e de um candeeiro art déco, situados ao lado dele, há outro detalhe a reter: ao lado dela, repousando suavemente sobre uma mesa imaculadamente branca, uma jarra com lírios, desde sempre associados à pureza feminina e à maternidade (nas zonas do leste do Mediterrâneo e nos Balcãs existe mesmo uma espécie denominada lírios-da-anunciação ou lírios-de-madonna, Lilium candidum).
Na história da pintura, são inúmeras as representações de Anunciação (Botticelli, Lippi, Memling, etc.) em que o anjo surge ajoelhado aos pés de Maria, oferecendo-lhe um lírio, ou vários. Os lírios não estavam no quarto dos Clark quando Hockney os retratou, foram por ele adicionados já no estúdio, o que é revelador de uma intenção deliberada de aludir ao facto de Celia Birtwell se encontrar grávida do segundo dos dois filhos do casal Clark, sendo também, provavelmente, uma referência implícita à pureza da sua velha amiga, em confronto com temperamento e com o comportamento pouco recomendáveis do marido. Hockney, aliás, pintou-o a partir de esboços que fizera quando ele acabara de sair da cama, com o cabelo desgrenhado e um olhar desafiante, oblíquo, quase marginal. Em contraste, Celia surge-nos como uma dama renascentista, de olhar sereno e casto, o sorriso plácido (há quem fale numa homenagem a Botticelli), com a mão na anca, numa pose típica das mulheres grávidas (em entrevistas, Celia dirá que tinha por hábito pôr a mão na anca e que a postura com que surge retratada nada teve que ver com o facto de estar de esperanças).
MrandMrsClarkandPercy é claramente inspirado no célebre RetratoArnolfini, que Van Eyck pintou em 1434 e que, por ter uma picturewithin apicture (os Arnolfini surgem reflectidos no espelho convexo colocado no centro da tela), serviu de modelo a AsMeninas de Velázquez e, claro, sempre fascinou David Hockney, que é fanático dos jogos da camera obscura e dos truques visuais dos velhos mestres, tendo sido autor, juntamente com o físico Charles M. Falco, de uma controversa e imaginativa teoria sobre pintura, a tese Hockney-Falco, que se baseia, entre outros exemplos, naquela obra de Van Eyck, obviamente.
No Retrato Arnolfini aparece um cão, símbolo de fidelidade; no retrato dos Clark, um gato esquivo, hirto como os felinos do Egipto antigo, de costas voltadas para o auditório. Os Arnolfini estão compenetrados do seu papel de esposos, ambos sérios e graves, sem o mínimo sorriso, ela com a cabeça levemente inclinada, em sinal de devoção conjugal e respeito ao esposo. São apresentados na sala de aparato da sua casa, com um candelabro opulento e trajes de estilo. Os Clark, à semelhança dos Arnolfini, também estão sérios e não sorriem, mas são retratados num cenário íntimo, o quarto do casal, e mostram-se numa pose muito mais descontraída (no caso de Ossie, até numa pose excessivamente descontraída: descalço, sentado indolentemente numa cadeira, de cabelo revolto e cigarro na mão).
Com uma diferença de cinco séculos, em ambos os quadros encontramos sinais exteriores de riqueza (o candelabro dos Arnolfini e o seu tapete oriental, o candeeiro déco, o telefone branco e o tapete felpudo em tons creme dos Clark) e o retrato, seja pintado por Jan van Eyck seja por David Hockney, constitui um emblema de ascensão social, um certificado de que se singrou na vida, vencendo origens humildes, fossem elas situadas na Lucca da Idade Média ou em Warrington, Lancashire, dos tempos da Segunda Guerra. O atestado de triunfo destes dois pares de alpinistas sociais, reforçado pela presença doutro adorno de luxo, os animais de companhia, é dado, num caso, por um espelho convexo de enormes proporções, tão grandes que nem era possível fabricá-lo na época (mais do que um objecto real e verdadeiro, trata-se de um símbolo, de um sinal de status); no caso dos Clark, e também colocado ao centro, o marcador social é uma janela aberta para a balaustrada de um prédio elegante de Notting Hill, o bairro da moda da altura, onde também David Hockney residia.
Nos retratos matrimoniais, a tradição mandava que o marido fosse colocado à esquerda, a posição proeminente para quem observa e lê a pintura como as linhas de um texto, da esquerda para a direita. O senhor Arnolfini, naturalmente, está do lado esquerdo, o que se vê primeiro, e a mulher, coitada, surge numa posição acessória, adjuvante. Hockney não foi o primeiro a quebrar a tradição, longe disso: por exemplo, em NoitedeVerãoNórdica, de 1900, de Sven Bergh, um quadro em que muitos detectam claras afinidades com MrandMrsClark and Percy, a mulher está à esquerda e o homem à direita, exactamente como Celia e Ossie Clark. Mas, na tela de Hockney, há a agravante de Ossie estar sentado e de Celia se encontrar de pé, com a mão na anca a reforçar o equilíbrio da sua posição erecta, numa postura muito mais formal - e logo, mais dominante - do que a do marido, surgindo este num lugar secundário e adjuvante, um papel quase tão ornamental como o das criadas velhas e dos servos obedientes da pintura antiga. Do ponto de vista do equilíbrio interno do casal, o quadro de Van Eyck, pintado em 1434 (ou o célebre MrandMrsAndrews, que Gainsborough fez em 1750), é muito mais simétrico e, digamos, mais "paritário" do que a tela que Hockney concluiu em 1971.
A ironia de Mr and Mrs Clark and Percy não é casual, de modo algum. O quadro foi longamente preparado desde 1969, com um trabalho meticuloso feito a partir de fotografias, esboços sucessivos e ensaios preliminares na casa dos Clark. Devido às suas dimensões, Hockney não pôde produzi-lo in situ e o facto de o pintar no seu estúdio deu-lhe a distância e a maturação necessárias a meditar e a ponderar cuidadosamente cada uma das soluções. Os Clark podem encontrar-se numa pose descontraída e informal, mas nesta obra de Hockney nada é fortuito ou foi deixado ao acaso. Recorrendo a um esquema organizativo que já utilizara em obras anteriores (The Room. Manchester Street, de 1967, e o desenho Window, Grand Hotel Vittel, de 1970), e que repetirá mais tarde (Artist and Model, 1973; Study for Portrait of Nick Wilder & Gregory Evans, de 1974; Looking at Pictures on a Screen, de 1977; Stillife with Curtains, 1986), a janela ao centro, de onde se vê uma balaustrada clássica e o arvoredo da rua, serve de separador visual e metafórico entre macho e fêmea, e funciona como o elemento vertical de um quadro dominado pela horizontalidade, a qual é acentuada pelas grandes dimensões da tela, mas que acaba por ser intersectada pela perna de Ossie, esticada na diagonal para além dos limites do razoável. É assaz sintomático que a harmonia da composição seja perturbada pelo elemento masculino, a longa perna de Raymond "Ossie" Clark.
Porém, o mais difícil de obter foi, sem dúvida, o efeito contraluz; no rigor dos rigores, Celia e Ossie deveriam aparecer escuros, imersos na sombra, quase imperceptíveis ao olhar encadeado pela luz que jorra da janela. Trabalhando afanosamente no seu estúdio, o pintor conseguiu atingiu a harmonia perfeita: o exterior encontra-se esbatido e o interior do quarto está mergulhado numa penumbra delicada, não excessivamente sombria. As balaustradas brancas são o elemento que auxilia, de forma decisiva, a acentuar o efeito contraluz. Lá dentro, as sombras não são carregadas em demasia, nem há espaços de obscuridade total. A colocação dos Clark junto à janela permite que sobre eles a luz se projecte de forma mais intensa. E, devido à sua posição, uma parte do corpo de Ossie Clark é banhada de luz, com bastante intensidade, enquanto a outra parte permanece na penumbra. Como seria de esperar, a duplicidade entre luz e sombra é particularmente notória na figura de Ossie. Em contrapartida, mais do que sobre Ossie, a luz projecta-se, aberta e inteira, sobre Celia, apresentada a três quartos. O mesmo acontece aos elementos que se situam na órbita feminina: o vaso com lírios e a mesa branca, simples e minimalista, colocada obliquamente na linha de onde provém a luz. A figura de Ossie projecta sombra no interior do quarto do casal. A de Celia, não. Obviamente...
Pobre Ossie, o mau da fita (ou, melhor, da tela). O casal separar-se-ia não muito depois, em 1974, ano em que ainda participam juntos no filme ABiggerSplash, de Jack Kazan, que, num misto de ficção e documentário, descreve o bloqueio criativo sofrido por David Hockney após a cruciante ruptura da sua relação amorosa com o jovem e belo Peter Schlesinger. O divórcio de Celia e de Ossie estava prenunciado no quadro que os Clark vendem à Tate Gallery por uma quantia algo irrisória (sete mil libras!) pouco depois de o receberem das mãos do pintor, como presente de casamento algo atrasado e, por isso mesmo, bastante ilustrativo da rapidez da degradação da vida em comum, atravessada pelas constantes aventuras extraconjugais de Ossie, com homens e com mulheres, e, pior ainda, pela sua terrível adição às drogas duras, ácidos em especial.
Em resultado disso, Ossie desbaratou em pouco tempo a fortuna e a fama imensa conquistadas como o criador de moda da moda, que o fazia ser glorificado na imprensa da época como "The King of King's Road" e vestir estrelas como Ali MacGraw, Elizabeth Taylor, Liza Minelli, Jane Birkin, Mick e Bianca Jagger, Keith Richards e Anita Pallenberg, a infortunada Sharon Tate, Eric Clapton, Yoko Ono, Jimi Hendrix, Britt Ekland, Bette Davis ou Goldie Hawn. Actualmente, os seus vestidos são disputados como quintessência do vintage e têm sido usados em grande estilo por Kate Moss, Naomi Campbell ou Emma Watson.
A importância de Ossie Clark na moda britânica dos anos 1960-1970 foi atestada não há muito numa grande retrospectiva que o Victoria and Albert Museum dedicou à sua obra, que durante décadas influenciou criadores de nomeada: Yves Saint Laurent, Anna Sui, John Galliano, Christian Lacroix, Tom Ford, Gucci, Prada, etc., etc. As modelos Twiggy, Amanda Lear, Pattie Boyd, Kari-Ann Jagger, Jean Shrimpton ou Penelope Tree posaram com vestidos de Ossie Clark para fotógrafos como David Bailey, Norman Parkinson ou Helmut Newton. Um portento, portanto.
Além disso, Raymond "Ossie" Clark encarnou, como poucos, o espírito londrino dos swingingsixties, nas suas grandezas e misérias. Conheceu Brian Epstein, esteve com Brian Jones no dia em que este morreu e no backstage do famoso concerto dos Stones no Hyde Park, era amigo de Brigitte Bardot, quando ia até Nova Iorque Ossie passava o tempo em festas ruidosas com Andy Warhol, Diana Vreeland ou Truman Capote. Uma vida à grande. Nada como ler uma entrada do seu diário, datada de 1974: "January 10. Moved into Powis Terrace. Dinner with Mick and Bianca [Jagger]. Took Mo to cherr him up. After, Paul Getty Jr. with Nikki Weymouth, Chrissy, Robert Fraser."
Vindo de origens modestas, Ossie enriqueceu rápida e tremendamente, graças a um talento inigualável e, já agora, graças aos dotes de Celia Birtwell, que lhe confecionava as criações arrojadas. A ele se devem os célebres jumpsuits, ainda hoje recordados, que Mick Jagger envergou em 1972 na atribuladíssima AmericanTour dos Rolling Stones, que culminou numa orgia de quatro dias em Chicago na mansão de Hugh Hefner, o patrão da Playboy, onde os Stones incendiaram acidentalmente uma casa de banho na preparação de uma substância de elevada toxicidade...
Outras criações famosas de Ossie Clark foram os casacos de pele de cobra, usados nos alvores dos anos 1970 por Keith Richards, Marianne Faithful ou Peter Schlesinger, o jovem e belo namorado de David Hockney. Mas, acima de tudo, Clark destacou-se por ter revolucionado o pedantismo austero dos desfiles de moda britânicos, pondo os seus modelos a dançar na passerelle ao som de música rock, e Ossie inovou logo no seu primeiro desfile, em Berkeley Square, ao utilizar, pela primeira vez no Reino Unido, modelos de raça negra, sendo também responsável pela democratização do estilismo, ao apresentar uma colecção de pronto-a-vestir na então muito elitista Semana da Moda de Londres.
Foi bom enquanto durou. Celia saiu de casa, levou os miúdos, Ossie afundou-se nas drogas, o seu estilo foi devorado pela ascensão do punk e de novos nomes, como Vivienne Westwood ou Malcolm McLaren. A firma Clark abriu falência, o fisco foi no encalço do estilista, este acabou a viver num quarto manhoso pago pela segurança social, em depressão tão profunda que nem o budismo conseguiu curar. Era avistado a deambular aos caídos por Holland Park, viam-no a rezar diariamente a um altar improvisado feito de maços vazios de cigarros Sobranie. Isto quando não andava à cata de beatas no chão ou de moedas lançadas à fonte do parque.
Às seis da madrugada de 7 de Agosto de 1996, a polícia interceptou uma chamada telefónica feita para o 999. Do outro lado da linha, balbuciando um mau inglês, alguém confessava um homicídio: Diego Cogolato, um italiano de 27 anos, matara Ossie Clark no seu quarto, dando-lhe 37 facadas no corpo e esmagando-lhe o crânio com um pote de terracota. A defesa alegou que Cogolato estava sob o efeito de Prozac e anfetaminas, o rapaz foi condenado a seis anos de prisão. Enquanto isso, Celia, a ex-mulher do falecido, teve sucesso moderado, mas tranquilo, na pequena empresa de confecções que fundou e a que juntou o filho e a nora. Manteve sempre uma grande e terna amizade com David Hockney.
Falta falar do gato. Só mais de duas décadas depois é que o pintor revelou o segredo: o felino que surge no quadro não era Percy, o macho, mas Blanche, a gata dos Clark. Quando Celia o alertou para o erro, David ordenou-lhe que se calasse, pois preferia o nome Percy e, para todos os efeitos, o quadro era dele, não dela. E assim, só há pouco foi desvendada a identidade do bicho ou, melhor, da bicha. Uma fêmea, claro. Miau, miau.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.