alguém respirava, à espera de ouvir-me falar
Domingo, 10 de Janeiro
Primeiro foi uma mensagem pequena, ainda de manhã. Vinha de um número que eu desconhecia: ja sei onde moras av infante d henrique (...) portanto e melhor falares comigo e sei mais
Onde aqui pus os parêntesis estavam números de porta e andar, o que me assustou um pouco. Pensei uns segundos e respondi:
Essa mensagem não é para mim, com certeza.
Agora percebo a semiótica. A ambiguidade. Na altura, não tive consciência disso: eu queria saber mais.
A resposta demorou umas horas. À sua chegada, o próprio telemóvel tremeu de maneira diferente:
Tu queres ver me no cemiterio montaste a loja a mula com as minhas coisas a dizeres me que tinha ficado tudo na loja da (...) e afinal foste buscar com ela as coisas nao sao so tuas sao minhas o sofa vermelho os sofas do jornal o bengaleiro coiso preto das fotos eu quero isso tudo queres montar lojas que seja com o teu dinheiro
Onde agora pus o parêntesis havia uma povoação dos arredores de Lisboa, o que me deixou a curiosidade em chamas. Mas a mulher parecia demasiado zangada, naquele seu fluxo-da-consciência capaz de atropelar ortografia e pontuação ao mesmo tempo, para não nos pôr em risco aos dois.
Fui mais claro:
Enganou-se no número. Queira confirmá-lo.
Mesmo assim, recebi dois telefonemas. Do outro lado, alguém respirava, à espera de ouvir-me falar. Falei de ambas as vezes, está lá e estou sim, mas talvez tivesse uma voz parecida com a do destinatário original.
Bloquei o número. Parte de mim, porém, queria saber mais sobre aquela mulher traída e roubada, suficientemente em fúria para chamar mula a outra, mas não para ignorar a possibilidade de uma ênclise no início de uma frase comprida.
Ver-me. Ver me.
Imaginei aqueles objectos: o sofá vermelho e os sofás do jornal, o bengaleiro e o coiso preto das fotos. Imaginei a história por detrás daquele coiso preto e o tempo que duas pessoas têm de partilhar até chegarem à cumplicidade de chamar coiso preto a um objecto sem que um deles chegue a duvidar do que se trata.
Imaginei a intimidade. Os anos, as expectativas acalentadas nos subúrbios de uma cidade grande e caótica. Imaginei o fim - imaginei o divórcio e, de novo, o divórcio foi a grande tragédia contemporânea, a grande tragédia dos povos ricos.
Bom prólogo para um romance: um autor que recebe uma mensagem por engano e parte em busca da sua remetente, uma mulher traída e roubada que, no auge da humilhação, ainda assim pondera entre uma próclise e uma ênclise e se decide pela mais bela.
Segunda-feira, 11 de Janeiro
Morreu David Bowie. Não me ocorre nada para escrever no Facebook.
Quarta-feira, 13 de Janeiro
Todos os dias passam por nós tractores. Grandes e pequenos, novos e velhos - um verde robusto, muito fiável, com uma cabina envidraçada por dentro da qual um tipo de boné se sente evidentemente capaz de enfrentar o Apocalipse, e um azul magrinho e decrépito, os pneus da frente empenados, e que todos os dias passa por nós carregado de mais, com um rapaz muito agasalhado ao volante.
Vimos a descer o Charcão, já naquela fase em que nos custam apenas os puxões dos cães, e o rapaz vai a subir, ao volante do seu tractor azul. Habituámo-nos a acenar um ao outro, e hoje acenamos de novo. Parece ainda mais cansado - ainda mais exausto de carregar aquele tractor, ainda mais triste e só na sua condição de motorista de um tractor velho.
O seu aceno é igualmente pesaroso. Eu tenho pena de um rapaz forçado a trabalhar assim, madrugada ainda, com casacos vestidos uns por cima dos outros e o frio cortante percutindo-lhe o rosto. Ele tem pena de um homem e de uma mulher obrigados a sair de casa tão cedo para passear cães à chuva, ainda que o intrigue a eventualidade de o fazerem de livre vontade.
Hoje, o tractor estava parado a meio do trajecto. Ouvi um ruído no cerrado por baixo da estrada - o rapaz tratando das reses. Acerquei-me do tractor. Vi o volante fininho, muito antigo, e as marcas do rapaz sobre o assento de napa. Vi a chave na ignição, uma manete partida - vi os pedais e umas capas em alumínio, vermelhas e brilhantes, com que o rapaz substituíra as borrachas velhas.
Segui caminho, a pensar naquela decoração. Se um dia eu contasse a história do rapaz, começava pelas capas vermelho-fogo com que enfeitara os seus pedais. Mas não estou certo de que houvesse tanto a contar como me parecia quando me limitava a acenar-lhe, descendo a encosta, enquanto ele subia ao volante do seu tractor azul, resistindo ao frio e pensando em poesia.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico