Alexandre Valentim Lourenço: "Os médicos têm de voltar a assumir a sua capacidade de liderança e de governança clínica"

Alexandre Valentim Lourenço é médico ginecologista obstetra, atual presidente da Secção Regional do Sul e um dos seis candidatos a bastonário. E diz que se há algo que o distingue dos outros é ter conhecimento dos problemas, da classe, da ordem e do sistema. Tem propostas concretas para a mudança e que esta deve começar já.
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O seu slogan para as eleições a 19 de janeiro de 2023 é: "Temos o poder de mudar". De que fala e como pode a Ordem mudar o sistema?

Os elementos fulcrais para mudar o sistema são os médicos. Se o sistema está a funcionar mal é também porque os médicos estão a baixar os braços, estão a abandonar o sistema público, indo para o privado e a trabalhar isolados. Nos últimos meses ouvi coisas por parte de colegas que nunca tinha ouvido, que vão abandonar a medicina para abrir um restaurante ou que querem ir para uma quinta que já era da família. Nós, médicos, somos quem conhece melhor os processos de doença, as terapêuticas e o próprio sistema, portanto somos quem tem mais capacidade e poder para o mudar. E a Ordem, como instituição, que representa toda a classe, dos mais novos aos mais velhos, dos que trabalham no litoral ou no interior aos reformados, dos médicos mais tecnológicos aos de família, tem uma visão global dos problemas e de futuro, o que lhe permite ser o principal interlocutor entre todos. A Ordem tem de defender a melhoria da qualidade da medicina em prol dos resultados ao serviço do doente. Este é um dos propósitos da minha candidatura. Conheço bem os problemas, trabalho num hospital e tenho formação e um percurso que me permitem apresentar propostas para definir já por onde o sistema deve ir e como se pode começar a mudar.

E como é que médicos e a Ordem podem começar a mudar o sistema?

Os médicos têm de voltar a assumir a sua capacidade de liderança, nos serviços, nos departamentos, nas organizações, de forma a olharem para os problemas dos doentes e fazerem propostas de resolução. Vou dar dois exemplos: as urgências hospitalares e os lares. Todos sabemos que não podemos continuar a investir na urgência, que temos é de melhorar os cuidados primários. Se melhorarmos estes cuidados retiramos automaticamente cerca de 30% a 40% dos doentes das urgências. Se o fizermos melhoramos logo o funcionamento dos hospitais, que deixam de viver para a urgência e podem abrir mais consultas e fazer mais cirurgias. Em relação aos lares: Portugal tem uma população idosa e cada vez mais sozinha, são mais de 400 mil pessoas com muitas patologias e dependentes, quer estejam em lares ou entregues às famílias, mas temos uma especialidade de geriatria que não é aproveitada. Porquê? Porque nos lares não há obrigatoriedade de um médico em permanência ou em part-time, e quando o idoso tem uma intercorrência o que se faz? Levam-no à urgência. Se houvesse a obrigatoriedade de um médico que visse a ficha do doente e o observasse, isso tiraria muitos doentes das urgências e melhoraria o sistema.

Essas mudanças também dependem da vontade política. O que diria aos decisores políticos?

Tenho participado em grupos de trabalho quer para a área das urgências quer para os lares. O papel da Ordem e dos médicos é alertar para os maus resultados de algumas práticas e apontar soluções, com evidência científica, de como se pode melhorar os processos. Temos de convencer o poder político desta capacidade da Ordem.

Isso quer dizer que a Ordem tem de ter um papel diferente?

Se achasse que tinha de ter um papel igual não falava de mudanças nem tinha propostas concretas. Nos últimos anos, a Ordem ganhou notoriedade, exposição e a sua voz passou a ser ouvida, embora não seja seguida muitas vezes - se calhar porque a mensagem também não passa corretamente ou porque o fórum em que se discute não é o mais apropriado. Mas a questão da comunicação é outro ponto da minha candidatura: colocar a Ordem a comunicar com o exterior de forma mais proativa e não reacional. Se formos proativos influenciaremos o sistema, mas também temos de comunicar melhor com os médicos. A mensagem tem de chegar a todos com qualidade e o que digo a um médico de medicina familiar de 30 anos é diferente do que digo a um cirurgião de 60 anos. Hoje há muitas formas de comunicar e a Ordem tem de fazer esse caminho, como tem de ter a capacidade de ajudar a liderar, fazendo formação e capacitando os médicos para assumirem a governança clínica. Os médicos têm de assumir este papel nas instituições. A Ordem vai dizer isto permanentemente, para que ninguém se afaste por auto iniciativa ou por pressão política.

DestaquedestaqueÉ preciso uma carreira nova, com mais de três graus, especialista, consultor e sénior, que permita a progressão, mediante provas e currículo, mas uma carreira facilitadora e não prejudicial.

O que quer dizer? Que os médicos só estão nas administrações como diretores clínicos e que têm, às vezes, um papel apagado?

Temos diretores de hospitais médicos que fazem um excelente trabalho, mas também temos outros que dirigem hospitais que funcionam muito mal - ou porque não têm perfil ou porque não tiveram preparação. E a Ordem pode ajudar nesta formação, temos uma competência em gestão de serviços de saúde, mas o que queria dizer é que a Ordem também tem de defender os médicos saneados. Na semana passada, um diretor da cardiologia do Centro Médio Tejo foi afastado do cargo por não ter feito a escala da urgência, uma urgência que nem deveria existir num hospital daquela dimensão, quando o mesmo médico levou para o serviço mais médicos e diminuiu a lista de espera de 400 dias para 30, começou a colocar pacemakers e a tratar os problemas cardíacos da população. E é afastado porque o diretor do hospital é um delegado político que quer colocar ali uma urgência que não faz sentido. Por isto, os diretores clínicos são muito importantes. Não podem ser apenas correias de transmissão nem membros financeiros de um sistema. Estão lá para defender a qualidade da medicina, para intervir nos serviços e não só para assinar papeis, o que tem acontecido nos últimos anos e tem destruído os hospitais. A Ordem tem de intervir nesta área.

A medicina e o SNS estão em crise. Se fosse bastonário o que faria?

A medicina não está em crise. Nunca teve tão bons resultados no tratamento dos doentes como agora. Temos é um problema de gestão dos cuidados, porque não se tomaram decisões políticas que requeriam coragem. Portanto, não considero que precisemos de aumentar a formação, o que precisamos é que os profissionais fiquem no SNS. Se não ficam é porque a remuneração não se modifica há 15 anos. É preciso uma carreira nova, com mais de três graus, especialista, consultor e sénior, que permita a progressão, mediante provas e currículo, mas facilitadora e não prejudicial, concursos regulares e que os profissionais sejam pagos de forma diferenciada. A Ordem tem de fazer uma proposta para novas carreiras e eu tenho propostas concretas. A urgência da carreira médica não pode esperar mais 10 anos.

Há mais cinco candidatos a bastonário o que o distingue deles?

Todos os candidatos querem dignificar a medicina e a Ordem, apesar de alguns deles nunca terem estado na Ordem e de um ter sido presidente da ERS, que sempre se opôs à Ordem. Mas falta-lhes algo que tenho em sobra: dedicação ao serviço público, à Ordem dos Médicos e aos problemas da medicina. Conheço os dossier, tenho empenho e falo com firmeza, serenidade e com conhecimento, sem polémicas. Temos de começar a modificar a formação, o percurso dos médicos e das instituições para termos uma medicina que garanta o acesso equitativo aos doentes.

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