Aldeia de porcelana

Viagem ao longo de três séculos pela aldeia e o museu da Vista Alegre, uma empresa pioneira na indústria cerâmica... e no futebol em Portugal.
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A VISTA ALEGRE tem a tradição de mudar o logótipo sempre que muda de presidente. Desde a fundação, há 185 anos, já lá vão 40 carimbos, referência através da qual se pode avaliar a época em que foi feito aquele serviço de chá que tem lá em casa e que lhe foi oferecido pela madrinha no dia do casamento.

A Aldeia Vista Alegre, em Ílhavo, foi a primeira a ter uma escola primária para que os filhos dos funcionários e os próprios trabalhadores pudessem aprender a ler e a escrever. O ensino da música deu origem a uma banda que tocou até no casamento do futuro rei D. Carlos com D. Amélia de Orléans, em 1886.

E também se construiu ali um teatro para os moradores do bairro social que, ainda na primeira metade do século XIX, cresceu junto à fábrica e onde ainda vivem alguns dos trabalhadores. A renda é paga com um dia de trabalho por mês. Há dormitórios, barbearia, posto médico e, até há pouco tempo, uma creche. No teatro ainda ensaia e apresenta espectáculos uma companhia amadora criada por colaboradores da empresa.

Foi também ali que se criou a primeira corporação privada de bombeiros em Portugal, a 1 de Outubro de 1880. Ainda hoje se mantém. Além de dar assistência permanente ao complexo, colabora com corporações da região em caso de sinistros graves.

A empresa teve a sua própria milícia armada, comandada por um dos filhos do fundador. A fábrica chegou mesmo a fechar para que os homens pudessem ir para o Porto lutar a favor dos liberais, durante a Guerra Civil de 1832-1834.

DEZ ANOS antes do fim da guerra, José Ferreira Pinto Basto, conhecido como um homem empreendedor, político e mecenas, apresentou ao rei D. João VI uma petição no sentido de «ergir huma grande fábrica de Louça, Vidraria e processos chímicos». El-rei acedeu, promulgou o alvará régio e assim nasceu, a 1 de Junho de 1824, a Real Fábrica de Porcelana Vista Alegre, em Ílhavo.

Desde então, no primeiro fim-de-semana de Junho, a família da Aldeia Vista Alegre junta-se para comemorar mais um ano de existência. A todos os colaboradores é oferecida uma peça criada especialmente para o efeito.

São histórias que, provavelmente, os cerca de 850 colaboradores que hoje trabalham na empresa desconhecem, mas que João Santiago, um dos três guias do Museu da Vista Alegre, também responsáveis pela conservação dos espaços das visitas guiadas, sabe contar como ninguém.

Inaugurado em 1964, o museu teve por base a colecção reunida pelo administrador Gustavo Ferreira Pinto Basto que, entre 1881 e 1921, deu início a um movimento de recolha sistemática de objectos que se encontravam dispersos pela empresa. Chegou a haver umas primeiras instalações em 1920, mas só abriu ao público 44 anos depois. Em 2001 foi sujeito a uma profunda remodelação que deu origem ao espaço actual.

OS OLHOS de João Santiago, há 31 anos na casa, brilham quando mostra a sala dedicada ao fundador e mostra as roupas bordadas pelas filhas deste – entre os 15 filhos que teve com sua mulher Barbara Alan, filha do cônsul britânico em Viena. Entre vários objectos pessoais, destaque para as condecorações – Cruz de Cristo e Cruz de Avis – e para o oratório. É apresentado como um dos três maiores oratórios privados do mundo. Foi exposto na Europália, na Bélgica, mas essa terá sido a viagem mais curta que fez.

O oratório acompanhava sempre José Ferreira Pinto Basto nas múltiplas viagens que fazia nas naus portuguesas para negociar tabaco, especiarias e sabão no Oriente. A excepção nesta sala vai para uma cadeira das Cortes (o Parlamento da monarquia constitucional) onde se sentou José Estêvão, o grande tribuno do liberalismo, deputado eleito pelo círculo de Aveiro.

Pacientemente, o guia lá vai respondendo às perguntas dos visitantes e dá informações sobre os núcleos principais do espólio, as colecções em cristal e vidro, pó de pedra e porcelana, desde o início da fábrica até à actualidade. Mas o que as pessoas querem mesmo é ver as cópias de peças que foram compradas ou oferecidas aos grandes deste mundo. As baixelas usadas pela rainha Isabel II de Inglaterra, pelo rei Juan Carlos de Espanha, a rainha Beatriz da Holanda, as que estão ao dispor do presidente Barack Obama na Casa Branca e em tantas mesas reais e presidenciais.

EM BANQUETES oficiais, como os oferecidos ainda recentemente pela presidência portuguesa e pela rainha Rania da Jordânia, são apresentas as mais finas, elegantes, requintadas e famosas porcelanas, consideradas entre as melhores seis marcas do mundo.

A sua beleza enquanto objectos de decoração, aliada ao sentido prático das peças de uso diário atraem também museus de todo o mundo, como o Metropolitan Museu of Art de Nova Iorque ou o Victoria and Albert, em Londres, onde estão expostas peças Vista Alegre.

Outros pontos altos da visita são uma terrina do primeiro serviço brasonado produzido em Portugal em 1846, Casal de Perdizes de 1968 e Flamingo de 1974. Poderá até apreciar os serviços em miniatura especialmente feitos para as meninas da alta sociedade brincarem.

A Vista Alegre tem um Clube de Coleccionadores fundado em 1985, com um limite máximo de 2500 sócios. Quem quiser entrar terá de ficar na longa lista de espera a ver se alguém desiste e lhe dirijam o respectivo convite.

Ainda antes de entrar na fábrica, o visitante passa pela capela de Nossa Senhora da Penha de França, edificada nos finais do século XVII, cujo altar-mor tem um presépio quase em tamanho real. É muito procurada para casamentos: basta fazer a reserva e convidar um sacerdote, família e amigos. E por lá pode fazer-se a boda, porque os espaços envolventes estão apetrechados para acolher eventos do género. E também artísticos, além de congressos e reuniões empresariais.

A FÁBRICA começou por produzir vidro, incluindo o cristal e o de laboratório. Quando em 1835 é descoberto caulim, quartzo e feldspato, na região de Sátão, de onde ainda hoje provêm estes compostos, José Ferreira Pinto Basto começa a fazer pesquisas e descobre que depois de retirados das minas, se forem cuidadosamente lavados e purificados, podem ser transformados nas mais finas porcelanas. Deixa para trás o fabrico do vidro e contrata o mestre francês Victor Rousseau, que em 17 anos desenvolve a arte do fabrico das porcelanas em Ílhavo.

Nas instalações actuais continuam a trabalhar os artesãos, sobretudo mulheres que criam à mão as peças. É tudo tão meticuloso que só o passar junto de um artesão parece que a obra-prima pode desmoronar-se.

Cada molde é criado manualmente para os pires, chávenas, açucareiros e tudo mais. É tudo mergulhado em vidro líquido, uma peça de cada vez, depois de cozida a 980 graus. Posteriormente, as peças são polidas uma a uma e voltam ao forno a 1800 graus. No controlo, em caso de existir um defeito, mesmo que quase invisível ao olhar, a peça é destruída. É assim para tudo quanto ali é fabricado, o processo é todo manual e trabalhado peça a peça. As destruídas são, na sua maioria, recicladas, voltando assim ao início da produção.

É nesta altura que encontramos Paula Gravato, na fábrica há 28 anos, a pintar meticulosamente um soldado de cavalaria. Quatro dias para o primeiro esboço, depois vêm os retoques. Pelas mãos desta artesã passam esculturas, muitas delas peças limitadas e numeradas, para serem pintadas – os moldes são depois destruídos.

PERÍCIA para juntar, por vezes, mais de vinte moldes diferentes tem Maria Isabel Neves Lopes. Há mais de quarenta anos que trabalha na secção de escultura. Para ela já não há segredos: afinal o que é que custa andar dias a juntar minuciosas peças cujo tamanho chega a ser mais pequeno do que uma ova de esturjão? São, por exemplo, as contas de um terço que será colocado numa pequenina santa, pequeníssimas pétalas de flores e as mais inimagináveis pequenas peças, bicos de aves, olhos, e tantos outros pormenores que nem conseguimos decifrar.

Quando a encontrámos trabalhava um chapim-real, uma das aves que depois são pintadas na presença de uma espécie verdadeira, viva, ou no máximo empalhada, para aperfeiçoar as cores.

Em 2001, o Grupo Vista Alegre fundiu-se com o Grupo Atlantis, onde ainda hoje as etapas de produção de cristal continuam a ser desenvolvidas recorrendo ao molde e à cana de sopro. Recentemente, numa OPA lançada pela Cerutil, empresa do grupo Visabeira (com sede em Viseu), este passou a deter 63,37% da empresa. Foi a Cerutil que também adquiriu a maioria do capital das fábricas Bordalo Pinheiro, nas Caldas da Rainha, tornando-se o maior grupo nacional de cerâmica. No total são cerca de 1950 trabalhadores que mantêm os seus postos de trabalho nesta área.

Pioneiros do futebol

Cristiano Ronaldo ou José Mourinho terão porventura em suas casas peças da Vista Alegre. O que provavelmente não sabem é que foi através dos bisnetos do fundador da fábrica de porcelanas que em Portugal se iniciou e dinamizou a prática do futebol. Guilherme, Eduardo e Frederico estudaram em Inglaterra, país onde aquele desporto foi inventado, tal como os pais e avós, dado que o fundador da Vista Alegre tinha lá um irmão banqueiro.

De regresso a Portugal, trouxeram na bagagem o gosto pela modalidade e, em Outubro de 1888, organizaram o primeiro jogo de futebol em Cascais. Surgiram então os primeiros clubes em Lisboa, Porto e Aveiro. O clube da Vista Alegre, ainda hoje activo, é um dos mais  antigos da história do futebol em Portugal.

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