Alcoutim: Um sítio nem-nem (nem Algarve nem Alentejo) 

Vila chegou a ter mais de dez mil habitantes e hoje tem 2500. É lá que o "senador" comunista Carlos Brito goza a sua reforma
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Há ironias do destino. Como militante comunista, Carlos Brito, hoje com 84 anos, integrou um coletivo que gastou grande parte das suas energias a lutar pelos direitos do operariado da CUF, no Barreiro, contra os respetivos patrões. Se ainda hoje o PCP tem uma forte base eleitoral de apoio naquela cidade da margem sul de Lisboa, em parte o deve aos enormes combates que lá travou, durante o Estado Novo. A CUF, diz ainda hoje a imprensa comunista, foi "um dos principais grupos do fascismo em Portugal".

Ontem, à conversa com o DN junto ao Guadiana, em Alcoutim, terra onde cresceu e que escolheu no final dos anos 1980 para viver a sua reforma, o velho comunista renovador reformado - foi suspenso do PCP em 2002 por um ano e depois manteve ele próprio essa situação - contempla, exibindo o sorriso sábio dos anciões, uma obra do grupo CUF cujos efeitos, reconhece, ainda hoje são decisivos para a economia do concelho: a ponte-cais.

Ora o que liga o Barreiro e a sua CUF a este distante concelho algarvio? Simples: as (desativadas) minas de São Domingos, num concelho vizinho, Mértola. Hoje exploradas apenas para efeitos turísticos, as minas forneceram durante décadas minérios depois processados nas fábricas do Barreiro. E para esses minérios chegarem das minas à margem sul de Lisboa, eram transportadas por terra até Alcoutim e depois, a partir daqui, por barco, descendo o Guadiana até Vila Real de Santo António e depois pelo mar, até ao seu destino. Para que a pequena vila algarvia estivesse plenamente equipada para receber essas embarcações, a CUF construiu a tal ponte-cais.

Hoje é essa infraestrutura que permite a Alcoutim receber os barcos-hotéis de uma companhia belga que lhes leva todas as semanas, subindo o Guadiana, dezenas de turistas. E se é Alcoutim que os recebe e não a vila gémea espanhola de Sanlúcar, logo do outro lado do rio, rigorosamente em frente à localidade algarvia, é porque está lá o cais que a CUF em tempos construiu - a CUF que Brito tanto se empenhou a combater.

Brito deixou o PCP mas não deixou a política. Formou a "Renovação Comunista", uma associação que em momentos-chave produz posições políticas (muito marcada pela ideia de convergência das esquerdas agora traduzida na geringonça, que não cessa de elogiar) e localmente dinamizou uma associação cívica de combate à desertificação (que já não existe, vítima das escassez de fundos comunitários).

A desertificação e o abandono deste concelho - "um lugar intermédio que não é nem Algarve nem Alentejo, é Algarve na vila e Alentejo no seu interior" - continuam. Chegou a ter mais de dez mil habitantes, hoje pouco passa dos 2500. Por isso Brito continua a fazer finca-pé em projetos como a ponte Alcoutim-Sanlúcar, que iria, no seu entender, pôr o seu concelho no centro de uma nova rota alternativa entre Lisboa e Sevilha. A agricultura também dá muito pouco - mas em alternativa surgiram as coutadas de caça (a maior das quais pertencerá ao enólogo João Portugal Ramos), que Carlos Brito elogia, como "fator de ordenamento do território e por isso de proteção civil" (aqui não vê floresta queimada). Restam, como fontes de emprego, os serviços públicos (com a câmara municipal evidentemente à cabeça) e, claro, o turismo.

Rogério Jacob, de 48 anos, nascido na terra mas criado na Alemanha com os pais emigrantes, já foi de tudo na vida - comerciante, vereador na câmara, jornalista na rádio local - e hoje é mais um concessionário de uma praia algarvia. Mas numa coisa ele é único. A sua praia, Pêgo Fundo, é a única praia fluvial do Algarve todo. Satisfeito, diz que o verão foi bom e a praia, banhada por um pequeno ribeiro, chegou a ter "600 pessoas de uma vez". Mas os jovens, queixa-se, continuam a ir-se embora. E agora, por via da formação superior que cada vez mais vão tendo, "já não emigram só para a costa do Algarve, emigram para o país todo".

NOTAS DE VIAGEM

Dia 1: 322 quilómetros

O DN inicia hoje a publicação de uma série de reportagens sobre o interior do país. Por causa das autárquicas mas sem falar muito das autárquicas, procurando antes retratar os concelhos visitados para lá da espuma das lutas políticas. Ontem percorreram-se 322 quilómetros, começando em Lisboa, passando por Alcoutim (distrito de Faro) e terminando em Mértola (distrito de Beja). Uma viagem - sem grande planeamento e ilustrada com fotos Instagram - que terminará por altura das eleições.

O mapa político local: ora PS, ora PSD

O poder vai alternando em Alcoutim. Ora manda o PS, ora manda o PSD. A CDU quase não existe. Nas últimas eleições teve apenas 2,5% dos votos (54 votos), contra 42,2% para o PSD (906 votos) e 50,8% (1091 votos) para os vencedores, o PS. O presidente socialista eleito em 2013, Osvaldo Gonçalves, recandidata-se. Avança pelo PSD (em coligação com o CDS, o MPT e o PPM) José Inácio e Rogério Furtado pela CDU. Nas eleições de 2009 foi o PSD que venceu. Este mapa político, em que o PSD e o PS vão alternando no poder, é bastante característico do Algarve, começando logo pela capital, Faro.

A gastronomia puxa ao Alentejo

Gaspacho, ensopado de borrego, peixes vários do rio, ensopados de enguias. A gastronomia local do interior raiano algarvio puxa bastante para o lado alentejano. A diferença, aqui, é que a terra pouco mais dá do que para agricultura de sobrevivência. Em tempos muito longínquos, na ditadura, o regime achou que também se podia estender a esta parte do território as campanhas do trigo que transformaram o Alentejo no celeiro de Portugal. Falhou tudo - e nem mesmo os adubos transportados pela CUF do Barreiro para Alcoutim resolveram o problema. Os cereais cresceram nos primeiros anos mas rapidamente a terra esgotou. Aqui as grandes herdades são usadas, muitas vezes, para coutadas de caça.

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