Alberto Carvalho: Do Bairro Alto, onde pedia moedas aos marinheiros, ao sonho americano

Brunch com Alberto Carvalho superintendente do sistema educativo de Los Angeles.
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Ausências crónicas, pioradas pela covid, fracas condições e piores resultados escolares, falta de professores e de pessoal. Não é animador o retrato rápido do sistema educativo de Los Angeles. Mas isso não assusta, antes motiva Alberto Carvalho, que aceitou o desafio de transformar essa realidade, à semelhança do que fez nas escolas de Miami - em 13 anos de trabalho dedicado, garantiu níveis de integração sem paralelo, mesmo entre os miúdos mais pobres, e resultados nos rankings bem acima da média nacional, até nos anos de pandemia.

O português nascido no Bairro Alto e que viveu a adolescência num bairro social dos Olivais, para onde a família de seis filhos se mudou entretanto - "quando entrámos naquela casa que tínhamos recebido, parecia que estávamos num palácio", conta-me num português perfeito e que quase não acusa os 40 anos vividos nos EUA -, sempre foi de fibra. E de meter as mãos na massa. "Se vejo um professor a passar mal o conhecimento, entro na aula e tomo as rédeas, da mesma maneira que se vejo o chão sujo peço a esfregona e mostro ao funcionário como deve fazer para evitar que se repita. Acredito que só pelo exemplo se lidera com sucesso", explica, à mesa d"A Brasileira. "Não sou o general na retaguarda a ver as tropas avançar. Faço tudo o que qualquer pessoa que trabalha para mim tem de fazer. E fico triste quando vejo que há muito quem não faz, não tem experiência e vai logo mandar - vejo muito isso em Portugal, muitas palavras no Parlamento e pouca ação. É frustrante."

Sabe bem do que fala, porque mantém uma visão ampla sobre as realidades que conhece, informa-se, visita - chegou a vir cá quando foi lançado o programa dos Magalhães, "uma iniciativa incrivelmente inovadora com uma execução péssima" e isso serviu-lhe de lição para implementar o ensino à distância em Miami, em tempos de pandemia. Como serviu o contrato que viu o então superintendente de LA assinar com a Apple para dar tablets a todos os alunos. "Uma plataforma única com conteúdo proprietário para um país ou um sistema educativo inteiro só podia dar mau resultado." Em menos de um ano, os tablets tinham sido vendidos ou os sistemas de segurança quebrados, e o superintendente estava na rua.

Pede uma "torrada portuguesa" e uma meia de leite, pequeno-almoço saudoso, e conta-me que acaba de chegar da Costa Oeste, para onde se mudou há apenas dois meses - a mulher, Maria, uma italiana com um percurso de vida semelhante ao dele, vai juntar-se-lhe quando encontrar em Los Angeles uma posição profissional de topo, como a que tem em Miami -, para uma semana de férias em Portugal. Para ver a mãe, de quem fala com imenso orgulho e carinho e de quem a covid o mantivera afastado nestes dois anos. Ainda assim, encontrou tempo para esta conversa, sem pressas, escolhida a esplanada do café onde noutros tempos "entrava como um rei" quando conseguia uns trocos para comprar um bolo. Conta-me a história da fundação d"A Brasileira por um emigrante português que para aqui trouxe uma diferente forma de beber café e até se lembra da curiosa origem da palavra bica (acrónimo de Beba Isto Com Açúcar). E quem o oiça dar dicas a uma turista americana que aqui parou a caminho de Paris - sobre o melhor pastel de nata de Lisboa, os locais imperdíveis e a luz incrível da cidade, que "não tem comparação e chega a ser mágica, prende-nos para sempre" - não acredita que alguma vez tenha saído daqui.

Alberto Carvalho nasceu no número 40 da Travessa da Espera e em miúdo achava-se "o rei do Bairro Alto; era muito pobre, mas com 10 anos era a pessoa mais importante do mundo", conta, revisitando com afeto o exíguo último andar onde viviam e recordando sem sombra de mágoa os "fatores ambientais" então desconhecidos (tintas com chumbo, fumo concentrado, janelas fechadas) que causaram a morte prematura dos dois irmãos mais velhos e do pai. "Ainda hoje, o meu e-mail é oxala44 por causa disso", diz-me, com 55 já feitos, uma carreira em que acumula prémios e uma vida que é citada como exemplo nos mais exigentes centros e jornais americanos. Ele orgulha-se dessas conquistas, claro, mas os seus elogios vão para o irmão mais novo, a quem pôde ajudar a estudar e que se fez médico dentista e cirurgião oral. "Orgulho-me muito dele, é como meu filho-irmão", admite, transparecendo-lhe no olhar a felicidade de ter podido poupá-lo ao que ele próprio não escapou. Ainda que interprete os momentos mais duros que viveu como tempos de liberdade e aprendizagem.

"Eu andava sempre na rua, a pedir moedas aos marinheiros e às prostitutas das docas - colecionava moedas estrangeiras e selos de outras paragens e fazia negócio", ri-se. "Fiz-me atleta na secundária, era bom em luta greco-romana, e andava sempre a correr as ruas... via muitas coisas que queria ser." E para concretizar os seus sonhos percebeu rapidamente que tinha de trabalhar, mas também de se atirar para novas paragens.

Aos 17 anos, estava a embarcar para Nova Iorque e meia hora depois de chegar a Manhattan já estava a lavar pratos num restaurante. Ainda diz que era "o melhor lavador de pratos da cidade". Quando o visto expirou e trabalhar deixou de ser uma possibilidade, atirando-o literalmente para debaixo da ponte, teve a sorte que lhe mudou a vida. Ao fim de um mês e meio a dormir na rua, um professor universitário convenceu-o a aceitar ajuda para se legalizar e estudar. Passou pela Broward College e pela Barry University e em 1990 Alberto Carvalho, miúdo pobre do Bairro Alto, lavador de pratos em Manhattan e sem-abrigo, formava-se em Biomedicina, especializando-se na vertente Física e Química. Seguir-se-ia um MBA que diz ter sido o que lhe deu instrumentos para desenvolver o conceito de negócios e liderança. "Os soft skills vêm de navegar no espaço, de ser professor em áreas muito pobres e de ser um inconformado. Eu, como criança pobre em Portugal, tinha mais oportunidades do que as crianças desfavorecidas num país riquíssimo como os EUA e achei que tinha de contribuir para mudar isso." E foi o que fez em Miami, entre 2008 e o final de 2021, quando aceitou tornar-se superintendente do sistema educativo de LA, o primeiro em muitos convites rejeitados por achar que a sua missão na Florida não estava cumprida.

A visão de um grupo de seniores de jornal do Avante! em punho à saída do Metro fá-lo viajar. "Aqueles são os jovens da revolução", diz, recordando os tempos em que deixava os pais de coração na boca, perdido no meio dos manifestantes, a colar cartazes ou a fazer arruaças no autocarro de dois andares que o trazia e aos colegas do liceu - e de onde fugiam pelo vidro traseiro quando percebiam que estavam a ser levados para a esquadra. Ri-se: "Se os meus pais tivessem de apostar, diriam que eu acabaria mal."

Certamente não pensavam que o Alberto que sempre procurava a maneira de tornar possíveis os aparentes impossíveis levaria essa máxima à letra, lutando contra todas as probabilidades para garantir melhores condições e resultados para os milhões de crianças cujos destinos e futuros traçou até agora, o seu trabalho carinhosamente apelidado de Miami miracle.

É isso que se propõe fazer também em LA, o segundo maior distrito escolar do país - maior em termos orçamentais, traçando o caminho para 450 mil crianças e mais 300 alunos adultos com um orçamento recorde de 20 mil milhões de dólares. Assim mesmo, mil milhões. "É mais do que alguns Estados têm para se governar", frisa aquele que apenas dois meses depois de chegar a Los Angeles já é chamado de "Furacão Alberto". "Apresentei um plano de 100 dias e já consegui alguns êxitos com os sindicatos. Por exemplo, há ali uma falta de professores crónica, e muitos alunos com dificuldades estão a ser ensinados por substitutos, mas há 3 mil professores que dizem que adoram ensinar e que estão deslocados em cargos burocráticos fora das escolas. Mandei vir todos de volta, para estarem onde faz sentido, para podermos dar melhores condições aos miúdos, reduzir o número de alunos por classe." Também já aboliu as máscaras - a taxa de vacinação na Califórnia é muito superior à média americana.

E estudou a lição a fundo. Descreve as diferenças entre Miami (onde tinha 7 mil milhões à disposição e havia sobretudo crianças cubanas, haitianas e americanas) e LA, onde a diversidade é absoluta: "há coreanos, filipinos, mexicanos, japoneses, chineses... é explosivo", diz, garantindo ter os professores do seu lado quando assinou cortes radicais nos gastos burocráticos para centralizar o dinheiro na oferta que pode proporcionar aos alunos. "Os administradores estão mais cautelosos", assume, mas para os convencer o plano de 100 dias foi fundamental: "Viram que é um plano de reforma sustentado para melhorar o futuro das crianças, com propostas como a criação de uma academia de pais, um passaporte de cultura e artes para todos os estudantes, reduzir tamanho das turmas, dar idiomas estrangeiros a todos, construir novas escolas, introduzir mais tecnologias." E está a adorar a vida em LA: "As cabeças são diferentes, abertas, consigo correr nas montanhas de Hollywood ao fim da tarde, ir à praia a Santa Mónica, e fui muito bem recebido." Até pastéis de nata de um restaurante português que por ali há lhe levam regularmente.

Alberto Carvalho já tinha cumprido a missão na Florida e ganhara o suficiente para de reformar com imenso conforto, com o salário inteiro e tranquilidade. De presente de despedida, deixou aos professores uma proposta passada para subir salários. Os amigos estavam convencidos que dali sairia para "dar palestras, escrever livros e ir ganhar uma fortuna no privado". Não viram o óbvio: a educação e o seu potencial para mudar vidas é ainda uma chama bem acesa em Alberto. "A minha mulher diz que a educação é que é minha mulher e ela é só a amante", ri-se. Diz que consegue fazer tanto porque se dedica muito e dorme pouco.

O seu plano de ação em LA é para cinco anos, mas quer realizá-lo em quatro, os definidos num mandato limitado pela lei estatal - que queriam contornar para lhe dar mais prazo mas ele rejeitou. "Agora estamos a viver a lua-de-mel... eu levei-os à praia e adoraram, mas quando entrarem na água, está fria, tem tubarões, há conchas que magoam os pés... aí a coisa começa a apertar", prevê, consciente do desafio que tem pela frente. Nada que o amedronte: "As crises trazem oportunidades, e adoro encontrá-las." Tem uma fórmula para lidar com as crises: "Sobreviver no curto prazo, identificar as oportunidades e fazer a mudança necessária ao futuro no médio/longo." "Em Miami passámos muitas, desde ondas de imigração a furacões devastadores. A pandemia foi terrível lá, porque há pessoas a viver mal, com carências alimentares, sociais... Nós reinventámos tudo, distribuímos mais de 30 milhões de refeições às crianças, fizemos a transformação tecnológica para levar as aulas remotas aos miúdos de uma semana para a outra."

Como? Porque Alberto é uma pessoa de visão e ao observar o que se passava na China teve a perceção de que poderia ali chegar e começou a preparar-se. Anos antes, inspirado pelas más execuções de Portugal e LA, dera vida a uma iniciativa nas escolas de Miami para angariar recursos para tecnologias e equipamentos. "Era um tema de equidade. Conseguimos 1200 milhões e fizemos parcerias com privados e comprámos computadores e hotspots para todos os miúdos. Quando o país tinha em média 40% dos alunos conectados, nós tínhamos 97%." Em março de 2020, quando as escolas fecharam, a transição para o ensino à distância foi imediata.

Agora, os seus maiores desafios são os números: os 49 mil sem-abrigo que vivem em LA, 9 mil deles crianças, as baixíssimas taxas de aproveitamento escolar, a regressão académica que a covid trouxe e que impactou mais as crianças pobres, com dificuldades de aprendizagem, que não falam inglês, as afro-americanas. "O meu plano de 100 dias revela as estratégias para acelerar o aproveitamento deles. É um desafio enorme. No mundo inteiro, vai levar anos até reconhecermos a dimensão dos danos causados pela pandemia - académicos, mas também relacionais, socioemocionais, etc."

Quanto a Alberto, está pronto para continuar a ajudar a recuperar e a abrir caminhos de futuro para muitas crianças. Quando se reformar, "Portugal é um sonho", reconhece, mas o ritmo que tem, a vida que se entranhou nele, é mais americana do que portuguesa. Talvez seja o seu presente de reforma, com muitas mais vidas mudadas para melhor.

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