Alain Ducasse: "Sinto que só agora estou a começar a minha carreira"

É um dos nomes mais conceituados da alta gastronomia. O franco-monegasco Alain Ducasse, que nos vários restaurantes espalhados pelo mundo "coleciona" 21 estrelas Michelin, falou ao DN, numa entrevista exclusiva, sobre os caminhos de futuro da cozinha.
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No luxuoso hotel Le Maurice, na rua de Rivoli a escassos metros das hordas de turistas que fazem fila para entrar no Museu do Louvre, o jornalista do Diário de Notícias é convidado a entrar numa sala exclusiva num piso inferior. Um espaço para refeições e reuniões privadas com uma mesa, longa, de madeira escura envernizada, com luzes minuciosamente alinhadas para o local onde os pratos são colocados. À espera estava já um pequeno-almoço bem francês, com croissants e pain au chocolat.

Os minutos antes da chegada do chef Alain Ducasse à sala permitiram observar, através de uma janela escancarada para a cozinha principal do hotel, os cozinheiros a preparar os alimentos - a chamada mise en place - para as refeições com estrelas Michelin que dali a escassas horas iriam começar a ser servidas. Entretanto chega Ducasse, o primeiro chef a conseguir três estrelas Michelin em três restaurantes diferentes. O monesgasco é bem francês. Seguro de si, simpático sem exageros. O seu nome é também o de um império de restaurantes, negócios de chocolates e gelados, premium, claro. Mas império é palavra que detesta, abomina mesmo, e já o afirmou muitas vezes a vários meios de comunicação. Não sente os restaurantes como negócios, não gosta de falar nisso. Prefere sim falar na filosofia gastronómica que desde 2014 defende e implanta e que acredita ser o futuro: cozinha sustentável, sem desperdício e cada vez com mais vegetais e menos proteína animal. Ducasse é mais do que um chef, é um ícone da cozinha francesa, a tal que dita as regras do mundo culinário desde o tempo de Auguste Escofier (1846-1935).

Inaugurou o campus da escola Ducasse em Meudon, arredores de Paris, em outubro de 2020 em plena pandemia. Já disse várias vezes que foi a realização de um sonho com muitos anos. O projeto está a correr de acordo com as suas expectativas?
O meu projeto de educação já tem vinte anos mas comecei a pensar nesta escola há cerca de dez. É uma escola bem desenhada, eficiente, tecnicamente muito completa. E posso dizer que, atualmente, é a mais bela escola de cozinha do mundo. Temos alunos de mais de 17 nacionalidades que vêm de todo o mundo para aprender a cozinha francesa. Jovens, homens e mulheres com uma grande paixão. No início dos cursos sou eu que recebo os alunos e nessas apresentações colocam sempre perguntas muito interessantes. São pessoas que decidem vir para Paris por dois ou três anos para aprender não só as técnicas, mas também sobre a sustentabilidade, a filosofia do futuro da comida.

Acredita que é essa sustentabilidade que vai alavancar o futuro próximo da gastronomia?
Sim, a gastronomia será feita com base na alimentação sustentável e humanista. Será uma gastronomia bem pensada para ser bem comida.

E será que as pessoas estão disponíveis para fazer essa mudança?
Somos nós, chefs, que temos de abrir esse caminho. Desde 2014 que nos meus restaurantes começámos a cozinhar com menos sal, menos açúcar, menos proteína animal e mais vegetais. Os clientes ainda não estavam prontos, mas foi uma escolha que fiz para abrir as mentalidades e mostrar que é possível fazer alta gastronomia com essas características. Não apenas para a alta gastronomia, mas para toda a gente. Por isso mesmo inauguramos, há pouco tempo, o restaurante Sapid aqui em Paris. Refeições acessíveis, num almoço que custa entre 25 e 35 euros, com pratos com vegetais e algumas proteínas do mar - anchovas ou sardinhas -, apenas como "tempero" em pequenas porções.

São muitos os restaurantes com o seu nome e em vários locais do mundo. Como é que consegue que a qualidade seja mantida?
São alguns restaurantes... mas só agora comecei (risos). Temos várias abordagens: por exemplo, o restaurante Sapid que já falei é uma espécie de refeitório low cost, para demonstrar que é possível ter acesso à boa comida com a nossa filosofia e a um preço justo. E ainda temos o negócio dos chocolates e dos gelados. Mas respondendo à sua pergunta, tenho colaboradores que trabalham comigo há muito tempo. Tenho chefs comigo há mais de vinte anos, outros há mais de 25 anos e eles sabem exatamente como a comida deve ser feita e qual o sabor que deve ter.

E como disse que estava só agora a começar, há novos projetos em que está ou vai apostar?
O mar é o futuro, sobretudo através de plantas e algas nobres e algumas espécies de peixes alimentados de forma vegan. A orientação é para a sustentabilidade. Primeiro vamos aplicar essa filosofia e depois refletir se podemos fazer negócio com isso. Mas vou abrir mais restaurantes, quer na Europa quer no Médio Oriente. Em breve vamos abrir um em Riade, na Arábia Saudita.

Regressando ao tempo da pandemia notou alguma mudança no mundo da alta gastronomia que tivesse sido influenciada por esse período?
A pandemia fez alguns chefs, não todos, refletirem sobre as alterações climáticas e sobre o futuro do planeta, e alguns começaram a olhar de outra forma para o papel dos vegetais na cozinha.

Há muitos franceses a viver em Portugal, em Lisboa sobretudo. Não é um local interessante abrir um restaurante com o seu nome?
Ainda não tivemos essa oportunidade. Se vier a existir podemos pensar nisso, mas já há muita competição em Lisboa.

E ainda lhe dá prazer cozinhar?
Estou sempre a cozinhar na minha cabeça. Mas, sim. Sinto prazer a cozinhar, ir aos mercados, descobrir bons e novos produtos quando viajo. Estou a trabalhar num livro com três chefs dos meus restaurantes, muito jovens, com menos de 40 anos. No livro vamos mostrar como eles trabalham comigo e como, conhecendo as minhas orientações, conseguem perceber o que funciona nos vários restaurantes onde estão. Este livro, que deverá ser publicado no outono, mostra um pouco como os chefs potenciam as suas diferentes personalidades apesar das minhas diretrizes que passam por uma obsessão de usar tudo sem desperdiçar nada. A criatividade nasce de acordo com os alimentos que temos disponíveis a que se junta a capacidade e conhecimento técnico de cada chef e, claro, o seu ADN e personalidade. A receita, no final, é o mais fácil. Ainda recentemente fiz viagens entre Mónaco, Paris e Londres, onde comi os pratos de três chefs muito diferentes - Emmanuel Pilon, no restaurante Louis XV no Mónaco; Amaury Bouhous, aqui no Le Maurice ; e Jean-Philippe Blondet que está em Londres à frente da cozinha do The Dorchester. Todos com uma qualidade fantástica, com o ADN da cozinha francesa, e que me deram a provar pratos muito interessantes com novos ingredientes e de uma enorme qualidade, no qual exprimem as suas personalidades, isto apesar do briefing que têm e que aprenderam comigo. Eu puxo por eles. Descubro os talentos e ajudo-os a progredir. Sou uma espécie de treinador e diretor artístico dos chefs. Tal como no desporto, sou o treinador, tenho a visão. Mas eles, hoje em dia, cozinham melhor que eu.

Ainda se recorda quando recebeu, pela primeira vez, as primeiras três estrelas Michelin?
Lembro-me muito bem. Foi em fevereiro de 1990 e estava em Tóquio. E pensei logo: como faço para ter dois restaurantes com três estrelas Michelin (risos).

O Guia Michelin é ainda é importante para si e para os seus restaurantes, afinal tem mais de 21 estrelas espalhadas por vários restaurantes...
Sim, com certeza. Pode viver-se sem as estrelas Michelin, mas é melhor tê-las. O guia Michelin existe há mais de um século e é por isso uma grande referência.

Conhece alguma coisa da gastronomia portuguesa?
Não conheço. Podia dizer que sim, mas não. A gastronomia depende da riqueza do terreno e vocês em Portugal têm o Atlântico, tem a terra e as vinhas. Têm uma grande generosidade da natureza no vosso país. Têm todos os ingredientes para entrar na competição da alta gastronomia.

Se pudesse encontrar o Alain Ducasse jovem, quando estava a começar a carreira, o que lhe diria agora?
Dizia-lhe para ser mais rápido em algumas coisas. Demorei muito tempo a desenvolver certo tipo de produtos, mas só agora consigo perceber isso. E também lhe diria para viajar mais. Aliás, há umas semanas dei uma entrevista a um jornal do Mónaco e disse-lhes o que sinto: só agora estou a começar a minha carreira.

filipe.gil@dn.pt

O jornalista viajou a convite da École de Cuisine Alain Ducasse

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