Ala do capital e ala radical zangam-se com Bolsonaro

Valor de mercado da Petrobras cai 76 mil milhões de reais depois do presidente substituir um economista por um general no comando da petrolífera. Na mesma semana, o Planalto ignorou a prisão de um deputado bolsonarista
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Na mesma semana, Jair Bolsonaro irritou duas das alas que mais contribuíram para a sua eleição como presidente da República em 2018: a alta finança, que influencia a política brasileira a partir da Faria Lima, em São Paulo, o equivalente à Wall Street nova-iorquina, e a extrema-direita radical, que manipula as redes sociais. Em causa, a substituição no comando da Petrobras de um economista por um general e o silêncio cúmplice do Planalto perante a prisão de um deputado bolsonarista.

Daniel Silveira, parlamentar detido por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) após insultos aos membros da corte e apologia do Ato Institucional Número Cinco, o decreto da ditadura militar de 1968 que viabilizou a tortura e a censura no Brasil, não recebeu, ao contrário do que esperava, o apoio de Bolsonaro.

Na tradicional live das quintas-feiras, o presidente falou por uma hora sem citar o nome ou o caso de Silveira. "Se depender de Bolsonaro, Daniel Silveira vai mofar na prisão", escreveu, na sequência, Ricardo Rangel, na revista Veja, no que considerou "um aviso a todos os tolos que ainda o defendem". "Silveira é mais um aliado que Bolsonaro deixa na chuva", refletiu, entretanto, Guilherme Amado, na revista Época, citando o histórico de bolsonaristas abandonados à sua sorte pelo chefe, como a ativista de extrema-direita Sara Winter ou o blogger Vinícius Eustáquio, por exemplo.

Segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo, aliados do presidente argumentam que "qualquer posição sobre o assunto transformaria o problema numa confrontação entre os Três Poderes, com potencial de contaminar as prioridades do governo no Legislativo" e que, "como o Planalto precisa fazer avançar uma série de pautas no Congresso de olho na reeleição de Bolsonaro em 2022", o presidente "não pode desperdiçar capital político numa guerra aberta com o Judicial e membros do Legislativo".

Nessa linha de raciocínio, a publicação bolsonarista Jornal da Cidade tentava sossegar a ala radical ao expor a suposta tática presidencial num artigo chamado "o sábio e estratégico silêncio de Bolsonaro".

"Certamente Daniel Silveira foi um excelente deputado, muito leal, que merece toda a gratidão e reconhecimento", escreve o articulista Ricardo Santi. "Muitos estão criticando o silêncio do presidente perante o vilipêndio que os juízes do STF praticaram contra a Constituição, contra a liberdade de expressão e contra a democracia (...) mas por mais que isso seja revoltante a omissão foi o melhor a fazer: qualquer movimento de confronto com o STF nesta circunstância agravaria a situação ao invés de ajudar."

Carla Zambelli, fervorosa deputada bolsonarista, alinhou pelo mesmo discurso: "Finalmente, o presidente fez o que vocês da imprensa querem sempre. Quando ele fala, é criticado. Quando ele mantém o silêncio, vai ser criticado também?"

Ouvido pelo DN, o professor de ciência política Vinícius Vieira sublinha que, "embora Bolsonaro tenha irritado a ala radical, a sua popularidade continua elevada, porque essa ala releva tudo o que ele faz, incluindo na questão do Daniel Silveira, porque sente que ele é a pessoa capaz de fazer a revolução que eles querem, de implantar uma ditadura de facto".

"Bolsonaro, entretanto, quer atrair mais votos além da bolha das redes sociais, além dos bolsonaristas raiz que valem uns 10 ou 15% do eleitorado, ele quer atrair os mais pobres, com o auxílio emergencial, e os camionistas, com a intervenção na Petrobras."

Domada a ala radical, o governo tem agora de sossegar a ala do capital após aquela intervenção - a troca do economista Roberto Castello Branco pelo general Joaquim Silva e Luna, no contexto da regulação do preço do combustível.

"Lastimável", escreveu Salim Mattar, ex-secretário do Ministério da Economia no governo Bolsonaro. "Roberto é um profissional extremamente qualificado que tirou a empresa literalmente do fundo do poço após o maior escândalo de corrupção do planeta. Em seu lugar será nomeado mais um militar."

"Vejamos, qual a justificação para catapultar o Castello Branco? Manda no preço quem pode e obedece quem tem juízo? Que boa coisa a se fazer para acalmar os ânimos do mercado. Que decisão acertada, em meio ao caos, não é mesmo?", acrescentou o economista Felipe Salto.

"O apoio da Faria Lima ao governo está por um fio, ninguém acredita mais no governo", adiantou Pedro Lang, analista da corretora Valor Investimentos.

Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, resumiu o sucedido a uma frase: "Boa tarde, Venezuela", comparando a ação de Bolsonaro às de Hugo Chávez ou Nicolás Maduro.

E a reação do mercado à nomeação de mais um general - os militares já controlam um terço das estatais - foi imediata e retumbante: o valor de mercado da Petrobras caiu do dia para a noite 76 mil milhões de reais [cerca de 12 mil milhões de euros], segundo dados da Economatica, maior empresa de informações do mercado latino-americano; em efeito dominó, Banco do Brasil e Eletrobras, os outros gigantes estatais, também tiveram quedas milionárias; o risco-país, que cresceu 96,87% ao longo do ano, sofreu novo abalo; a subida do dólar depois da notícia para quase 5,4 reais pressionou ainda mais o preço dos combustíveis; e investidores da empresa anunciaram uma ação coletiva judicial contra a interferência política do governo.

"Com a intervenção na Petrobras, Bolsonaro irrita o mercado e o mercado tem grande poder na política nacional no Brasil, mesmo não havendo doações de campanha", afirma o professor de ciência política Vinícius Vieira. "E se ele não satisfizer o mercado, a Faria Lima procurará alternativas políticas, como, por exemplo, Luciano Huck, ou outra candidatura pelo centro."

"No entanto, o mercado já perdeu eleições: em 2002, com a vitória de Lula, e em 2014, com a derrota de Aécio para Dilma, ou seja, tê-lo do lado é um apoio importante mas mais para a governabilidade do que para a eleição propriamente dita."

As últimas duas sondagens conhecidas, entretanto, indicam leve queda ou estabilidade na aprovação de Bolsonaro. Segundo levantamento da XP/Ipespe, de dia 24, 42% dos eleitores consideram a gestão de Bolsonaro má ou péssima, 31% ótima ou boa e 24% regular, indicadores idênticos ao levantamento anterior.

Sobre a troca de chefia na Petrobras, só 70% dos ouvidos soube da notícia, sendo que, desses, 40% consideraram que Bolsonaro errou ao demitir o economista Castello Branco e 38% acharam que ele acertou ao indicar o general Silva e Luna para o cargo, enquanto 23% não soube responder.

Na pesquisa da CNT, de dia 22, a desaprovação a Bolsonaro subiu para 51,4%, enquanto a aprovação se manteve nos 43,5%. "Sinceridade" foi a qualidade do presidente mais citada e "falta de educação" o defeito mais referido noutro item da sondagem.

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