Akram Kahn entrou na mente de Stravinsky e fez dela um palco
Há qualquer coisa de extraordinário na mudança que uma observação do coreógrafo pode provocar logo de seguida no movimento do bailarino. Akram Khan dá indicações a Miguel Ramalho, bailarino da Companhia Nacional de Bailado (CNB), e tudo muda. De gorro na cabeça, sobre o rosto com os traços que imediatamente denunciam as suas raízes do Bangladesh, o coreógrafo britânico estava no estúdio da companhia, num dos últimos ensaios de iTMOi - In the mind of Igor que teria com os bailarinos. E estes faziam agora silêncio para o ouvir.
O coreógrafo e bailarino falava em "encontrar a verdade do movimento", e dizia a Miguel acerca daquela personagem tão próxima de Stravinsky, o Igor que dá nome à peça desde ontem em cena no Teatro Camões: "Queres passar a mensagem de que estás aqui para libertar toda a gente dela [a rainha]. Para mim Stravinsky significa isso: liberdade". A personagem pretende romper com o que demais se passa em palco e que resultará no sacrifício de uma rapariga. Akram informa o bailarino de que ele é uma espécie de Sancho Pança, o fiel escudeiro do Dom Quixote: um olhar lúcido, exterior.
É a primeira vez que o coreógrafo transpõe iTMOi para outros corpos que não os dos bailarinos da sua companhia. A peça foi-lhe encomendada para estrear em 2013, ano em que se comemorou o centenário de A Sagração da Primavera. Falamos na plateia vazia do teatro, para que ele explique como foi o processo de entrar na mente do compositor russo (1882-1971).
"Acho que começou com a ideia de rutura. E aconteceu-me uma rutura física em 2012, quando o meu tendão de Aquiles rompeu. Comecei a procurar entrevistas e a ler sobre Stravinsky; tinha muito tempo, estava na cama com a perna levantada. Queria entrar no que ele estava a pensar quando fez A Sagração da Primavera", conta. Não usa senão 30 segundos dessa obra que tanta polémica causou há mais de cem anos. Antes, convocou Nitin Sawhney, Jocelyn Pook e Ben Frost para compor a música. E iTMOi é muito diferente da coreografia de Nijinski para a peça de Stravinsky, ou da obra homónima de Pina Bausch. Ali não se dança a música de Stravinsky, antes parece pôr-se em movimento, através da linguagem de Khan, a engrenagem de um mundo muito próximo dele e daquela peça em particular.
Akram fala como quem descreve alguém com quem travou um conhecimento íntimo. "Há algo em Stravinsky que procurava que voz lhe era única, o lugar onde pertencia neste mundo, e acho que A Sagração da Primavera foi a grande revelação. Ele também era muito religioso. Isso é muito pouco comum. Porque por um lado é tão contemporâneo, e por outro tão ortodoxo, da igreja russa ortodoxa. Era muito rigoroso nas suas visões políticas ou religiosas e na sua música tão progressista. Esta contradição é muito interessante."
Conta que sons ouvia o compositor ao descer as ruas de São Petersburgo e como eles aparecem, como que sub-repticiamente, na sua música. Conta como ele era de certa forma o irmão fraco, ao pé de outro "muito forte, bonito". Perguntamos ao coreógrafo pela sua irmã; a história é conhecida. "É quatro anos mais nova, mas era muito melhor do que eu. A minha missão na vida era ser a minha irmã, até que a superei. E de qualquer modo ela desistiu da dança, graças a Deus [hoje é contabilista]. E depois pensei: com quem compito agora? Senti que a única pessoa com quem tinha de competir era comigo. O meu talento - não tenho muitos, mas este é muito específico - é ser obcecado com o que faço."
Neto de um "matemático genial, conhecido por grande parte da sociedade do Bangladesh" da sua altura, Akram diz que viveu durante algum tempo convencido de que era um "fucking genius" e que tinha herdado o talento do avô. Percebeu depois que não, mas ficou-lhe, diz, a experiência de "criar e compreender padrões". E é com eles, no ritmo e nos corpos dos bailarinos, que ergue o mundo que põe em cena no Teatro Camões.
Um dos nomes maiores da criação coreográfica contemporânea, Akram esteve com os bailarinos da CNB em setembro, para uma audição. Lourenço Ferreira, bailarino de 22 anos que interpreta o padre, conta que essa acabou por ser também um workshop para eles. "A fisicalidade é que traz sentimento no trabalho dele, [mas] dançar parte muito da nossa cabeça. Na personagem que interpreto, muito do que faço tem que ver com isso."
"A verdade está sempre no corpo. No fim, tem de ser ele a comunicar a história. E a eletricidade vem quando estamos no limite. Quando é completamente seguro, é como se fosse automático. E isso não é viver. Viver é estar no limite. Quando estamos em terreno intermédio, não nos estamos a mexer. Estamos parados. Entre dois barcos, temos um pé num e o outro no outro. É quando tiramos um pé que estamos a viver", diz Akram.
E porque falamos do corpo, perguntamos-lhe pela reforma como bailarino. Tem 42 anos. "Estou a fazer o meu último solo e depois paro. Penso que em 2019. Depois talvez dance uma peça de dez minutos, mas não uma longa. Vou deixar de fazer solos do nível de Desh [que trouxe a Portugal em 2014]." Porquê? A resposta vem com naturalidade. "Oh, estou cansado de lesões e da dor, que costumava ser engraçada, mas já não tem piada. O nosso corpo diz-nos. Já não sou livre."