Ainda sobre a guerra colonial

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Tem-se falado muito nos últimos dias sobre a guerra que a governação de Salazar iniciou em 1961, depois dos massacres pela UPA, de Março do mesmo ano, no norte de Angola. De que os mais exaltados nacionalistas omitem, porém, os bombardeamentos que a Força Aérea portuguesa perpetrou sobre as populações africanas, com alguns milhares de mortos, segundo algumas fontes, dois meses antes, por estas se terem revoltado contra as miseráveis condições de trabalho a que estavam sujeitas na Baixa do Cassange.

Do que raramente se fala também é do papel das Nações Unidas em todo este contexto e da relutância que o governo português tinha sobre essa organização.

É sabido que as Nações Unidas foram criadas em 1945 pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, com destaque para os Estados Unidos da América e a União Soviética.

As primeiras palavras da Carta da ONU são: "Nós, os povos das Nações Unidas, estamos decididos a preservar as gerações futuras do flagelo da guerra". E depois continua com uma série de proclamações sobre os direitos humanos, a igualdade de direitos entre homens e mulheres, a justiça, as obrigações resultantes dos tratados internacionais, entre as quais a Carta, o progresso económico e social de todos os povos e a manutenção da paz e da segurança internacionais. A Carta foi assinada a 26 de Junho de 1945, em São Francisco, e aderiram à organização 51 países. Portugal, a Espanha e a Itália só entrariam em 1955, o Japão em 1956 e as duas Alemanhas em 1973, depois dos acordos de reconhecimento mútuo.

Acontece que o Capítulo XI da Carta, assinada pelos primeiros 51 países aderentes e depois aceite por todos os outros que se lhe seguiram, intitula-se Declaração Relativa aos Territórios Não Autónomos. Aí se afirma que os membros das Nações Unidas, possuidores de territórios cujas populações não se administram a elas próprias, são obrigados a assegurar o desenvolvimento e prosperidade desses territórios, reconhecendo o primado dos interesses dessas populações e da sua cultura, o seu progresso político, económico e social, a sua instrução, desenvolvendo a sua capacidade para se administrarem a elas próprias, artigo 73. O que incluía a obrigação de comunicar regularmente ao Secretário-Geral da ONU informações estatísticas e outras de caracter técnico relativas ao desenvolvimento dessas aptidões. Ora, logo em 1946 e 47, a Assembleia Geral da organização, que se reúne todos os anos a partir de Setembro, começou a enviar aos então países aderentes questionários sobre os TNA, Territórios Não Autónomos, relativos aos elementos acima referidos sobre aquelas populações.

Deve-se acrescentar que a questão colonial estava na ordem do dia porque depois da capitulação do Japão, em resultado das bombas atómicas largadas pelos Estados Unidos em duas das suas cidades, os povos da Ásia que tinham sido ocupados durante a guerra por aquela potência do Eixo, nomeadamente a Indonésia e a Indochina, criaram os seus próprios movimentos pró-independência, aproveitando a ausência das antigas potências coloniais durante vários anos. A que a França e a Holanda responderam com uma intervenção militar. No caso da Indonésia, a Holanda desistiu dessa intervenção em 1949, reconhecendo a independência da sua antiga colónia. Na Indochina, a França retirou-se em 1954 depois de uma derrota estrondosa, com vários milhares de mortos, feridos e prisioneiros, em Dien Bien Phu, a que se seguiu a intervenção dos Estados Unidos na Guerra do Vietname, que se estendeu por mais de 10 anos, com intervenções igualmente no Camboja e no Laos, com o intuito de conter o alastramento do comunismo na Ásia, com a proclamação da Republica Popular da China em 1949.

No Reino Unido, com a subida ao poder do trabalhista Clement Attlee, que ganhou as eleições a Churchill em Junho de 1945, foi dada a independência à Índia em 1947 e à Birmânia, actual Burma, em 1948. A que se seguiram, em 1957, as independências da Malásia e do Gana e em seguida de outros territórios do Império Britânico.

Portugal vai aderir às Nações Unidas em 1955 e em Fevereiro de 1956 é questionado pelo Secretário-Geral, juntamente com os outros novos aderentes, se tem Territórios Não Autónomos e, no caso afirmativo, lembrava as obrigações referidas respeitantes ao Capítulo XI da Carta. A resposta de Portugal, enviada vários meses depois, declarava que não tinha TNA e por isso não estava obrigado ao cumprimento do Capítulo XI.

É a conhecida manobra jurídica portuguesa de passar as colónias a províncias ultramarinas, como se isso alterasse alguma coisa na vivência concreta das populações africanas.

Desde 1949, no entanto, estava em curso na Assembleia Geral um debate sobre a definição efectiva de Território Não Autónomo. E em 1952 é publicada uma lista dos factores a ter em conta. Para ser autónomo, um território deveria ser independente ou ter outra forma de autonomia separada ou uma união ou associação à metrópole. Nos diferentes casos, o território deveria ter-se exprimido livremente. (Que foi o que não aconteceu com a anexação de Timor pela Indonésia, mas aparentemente aconteceu quando a Rússia anexou a Crimeia em 2014). Pouco tempo depois, a Resolução 742 (VIII) da AG de 27 de Novembro de 1953 confirmava que um território para não ser mais incluído na lista dos TNA deveria ter acedido à independência ou a outra forma de autonomia, como uma união, escolhida por consulta livremente efectuada às populações.

Ora, no caso dos territórios portugueses do Ultramar nada disto aconteceu, pelo que o governo de Salazar esteve mais de uma década a desrespeitar o direito internacional e as resoluções de uma organização internacional a que tinha aderido por livre vontade.

O que não é de estranhar num governo que não respeitava os mais elementares direitos individuais dos seus próprios cidadãos na metrópole.

Mais tarde, a jurisprudência onusiana passou da discussão do estatuto dos TNA para as condições e obrigação do acesso à independência desses territórios. Não sem antes ter aprovado a Resolução da AG 1541 (XV) de 15 de Dezembro de 1960, em que tornava obrigatória a comunicação das informações sobre as populações no caso do território se encontrar geograficamente separado do país que o administra, que era o da situação portuguesa. No dia anterior, fora aprovada a Resolução 1514 (XV), afirmando o legítimo direito à independência dos povos sujeitos à dominação colonial, situação de facto dos territórios portugueses. É só depois disto que são desencadeadas as acções militares em Angola contra a presença de Portugal.

Investigador em Relações Internacionais, antigo funcionário da Comissão Europeia

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