O suplemento Atual do último Expresso traz um artigo extremamente interessante de Carlos Reis, intitulado "Os Maias depois de Eça". Carlos Reis é, sem dúvida, um dos maiores especialistas contemporâneos da obra de Eça de Queirós e coordena a edição crítica das suas obras, em curso na Imprensa Nacional - Casa da Moeda, sendo autor de vários textos definitivos sobre o romancista.O propósito evidente do artigo é o de "legitimar" (o que talvez não fosse tão necessário quanto isso...) a iniciativa que o Expresso tomou ao convidar seis notáveis autores a escreverem uma "continuação" do romance queirosiano até 1973, ano da fundação do semanário.O texto de Carlos Reis arranca de um importante preâmbulo em que são convocadas, com sucinta precisão, a recepção e a leitura da obra de arte (literária) e os principais especialistas que teorizaram sobre esses aspectos, de Roman Imgarden a Umberto Eco, passando por Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, conjugando-se essa síntese, que passa necessariamente pela fenomenologia da leitura, com a experiência que todos temos de imaginar a figura, os gestos e as feições das personagens que nos impressionam numa obra de ficção - e por isso tantas vezes estranhamos vê-las dotadas de outras características e atributos na ilustração ou no cinema.A questão fulcral parece ser a de saber se Os Maias são um romance "definitivamente "fechado"" e o que é que explica a sua fulgurante permanência no cânone, para além de leituras mais ou menos superficiais a que a obra foi dando lugar durante mais de cem anos. E Carlos Reis afirma que "Os Maias parecem ter sido escritos para serem continuados", apontando passagens que poderiam indiciá-lo e vendo em Carlos Fradique Mendes, na esteira de António José Saraiva, a consubstanciação de um prolongamento de Carlos da Maia.Sem estar inteiramente de acordo com Carlos Reis, acho que a ideia de propor a continuação da obra de Eça constitui um desafio interessantíssimo, quer para os autores quer para os leitores. Não estou inteiramente de acordo com o professor de Coimbra porque, na última página do romance, a célebre exclamação de Carlos da Maia e de João da Ega, "- Ainda o apanhamos!", enquanto se esfalfam a correr para o americano, de modo a não faltarem ao jantar combinado no Bragança, não envolve apenas o desmentido da conversa que eles acabam de ter sobre a falta de sentido de qualquer esforço: reduz também a tragédia amorosa e familiar por que Carlos passou a uma mera trivialidade e está nisso uma poderosa manifestação, tanto da ironia de Eça, como do cinismo comportamental que ele confere a essas duas personagens. Ora, partindo desta leitura, parece-me que seria difícil conceber uma continuação, não obstante a obra parecer suficientemente "aberta"...Todavia, nada há que a impeça: a ideia em si é aliciante e há precedentes ficcionais com Os Maias e outras obras de Eça, sem falar em adaptações ao teatro e ao cinema: por exemplo, em Madame, Maria Velho da Costa põe em cena Maria Eduarda, personagem de Eça, e Capitu, personagem de Machado de Assis, ocorrendo-me também, embora neste caso sem relação directa com Os Maias, o romance Nação Crioula, de José Eduardo Agualusa, que em 1997 "prolonga" a correspondência de Fradique Mendes, fazendo-o reviver e escrever em exóticas paragens.A tentação de dar continuidade a histórias de ficção que nos marcaram é provavelmente tão antiga quanto a própria literatura e a tentação simétrica de romancear factos históricos: já Quinto de Smirna prolongava Homero e é muito possível que o devaneio de um escritor sobre o destino de grandes personagens de obras que também parecem definitivamente "fechadas" (pensemos nos romances de Stendhal, de Balzac ou de Dickens) tenha estado na origem de muitas criações literárias de primeira água, sem que disso nos apercebamos muitas vezes. Aliás, Balzac encarregou-se ele mesmo de o fazer...Há uns bons quarenta anos, na Alemanha, vários autores contemporâneos "continuaram" a vida de personagens da chamada Weltliteratur num livro que, salvo erro, se chamava Leporello fällt aus der Rolle. Realmente, o que terá acontecido a Leporello depois da morte de D. Giovanni, arrastado pelo Comendador para as chamas infernais?Oxalá, portanto, valha a pena precipitarmo-nos sobre o romance do Eça com os prolongamentos dos seus actuais continuadores, exclamando alegremente: "Ainda o apanhamos!"