"Ainda hoje não sei explicar por que meti o Liedson e o Kelvin"
Último treinador campeão pelo FC Porto, Vítor Pereira continua a recordar com um sorriso nos lábios o momento Kelvin que vai também perdurando na memória dos portistas como a última imagem de um título nacional celebrado no Dragão.
Por muitas voltas que a vida dê, e a de Vítor Pereira tem dado muitas nos últimos quatro anos (tal como a do FC Porto, mas concentremo-nos no técnico neste texto) - da Arábia Saudita para a Grécia ou Turquia, com a paragem mais recente a acontecer na segunda liga alemã, onde não evitou uma frustrante descida à terceira divisão -, o treinador espinhense vai ficar para sempre ligado a um dos episódios mais emocionantes da história do FC Porto e do campeonato português: o golo de Kelvin, o minuto 92, Jorge Jesus a ajoelhar no Dragão, Vítor Pereira e todo o universo portista numa explosão de emoções que não se apaga.
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Nesta sexta-feira, o treinador voltou a evocar esse momento, na Faculdade de Psicologia do Porto, onde decorre até este sábado o I Congresso Internacional de Periodização Tática, o famoso conceito de treino criado por Vítor Frade e que inspirou as últimas gerações de treinadores portugueses, de José Mourinho e André Villas-Boas ao próprio Vítor Pereira. Num vídeo de cerca de dez minutos que o ex-treinador do FC Porto montou para "explicar de forma mais fácil" o seu modelo de jogo nas reuniões com clubes interessados, a jogada que resulta no golo de Kelvin é, claro está, presença obrigatória. E foi no momento da visualização do vídeo, já na parte final da intervenção de Vítor Pereira neste congresso, que o técnico recordou o momento que ficou eternizado no museu do Dragão.
"Ainda hoje não consigo explicar o que me levou a meter o Liedson e o Kelvin naquela fase. Só sei que quando olhava para o banco só os via aos dois. E pensei: um [Kelvin] é um "irresponsável" e não tem medo de errar. Só lhe disse: "quando tiveres a bola é para ir para cima deles". Sempre podia arranjar uma falta ali à entrada da área, qualquer coisa. O outro [Liedson] já não era o mesmo que tinha estado no Sporting, mas pensei: "é rato, se aparecer ali uma bola na área ele pode empurrar". Eh pá, foi intuição. E Deus. Os meus adjuntos diziam não e não, e eu sempre com a ideia a bater-me na cabeça. Pensei que só podia ser alguém lá em cima a tentar convencer-me."
Um momento de sorte? Talvez, mas... "Se não tivéssemos ganho aquele jogo, e tivéssemos empatado, teríamos perdido o campeonato sem qualquer derrota. Em dois anos como treinador principal FC Porto só tivemos uma derrota. Não pode ser só sorte", contrapôs, perante uma plateia cheia de ávidos aspirantes a treinadores. Mas essa ultrapassagem ao Benfica na reta final do título de 2012/13 começou umas semanas antes, lembrou Vítor Pereira, com uma inversão estratégica no discurso.
"Depois de semanas e semanas a repetir o mesmo discurso, a tentar meter pressão no Benfica, eles vão falhar e nós temos que estar em cima, aquilo começou a tornar-se um pouco frustrante porque eles não perdiam pontos. Então quando nós jogávamos a seguir a eles e íamos a entrar em campo já a saber que eles tinham acabado de ganhar mais um jogo... não foi fácil. Podem ter a certeza absoluta que a determinada altura só eu e a minha equipa técnica é que acreditávamos. Então de que é que eu me lembrei? Eles tinham ganho ao Marítimo, tinham feito uma grande festa no relvado e eu fui à conferência de imprensa dizer que o campeonato acabou. Pensei: "vou tentar relaxá-los assim". E disse que o Estoril não tinha hipótese nenhuma de ir pontuar à Luz, porque na Luz o Benfica ganhava a toda a gente. No treino seguinte cheguei ao meio do campo e tinha toda a gente a olhar para mim, a perguntar por que fiz aquilo. E eu expliquei que tive que fazer aquilo para mudar a estratégia. "Agora vamos fazer como a cobra. Vamos estar a fingir de morto e se eles empatam o jogo nós caímos-lhes em cima"". Assim foi, o Estoril foi empatar à Luz na jornada seguinte e deixou o Benfica à mercê do FC Porto no tal confronto direto do Dragão, na penúltima jornada.
Houve mais pormenores da sua passagem pelo FC Porto que foram saindo, aqui e ali, ao longo de quase uma hora de um discurso fácil, solto, bem disposto e humorado, de um Vítor Pereira hoje em dia bem mais confortável com a comunicação do que nos seus primeiros tempos como técnico principal dos dragões. Nesse vídeo onde o técnico resume a sua metodologia, por exemplo, surgem ainda outros golos marcantes desses anos no Dragão, como o calcanhar de Jackson Martínez ao Sporting, que levou Vítor Pereira a desabafar: "Ai que saudades que eu tenho...", para risota geral. O que o levou a precisar: "Saudades do Jackson, atenção. Quando mostramos isto a um diretor desportivo, tem impacto. Eles perguntam: "Também vamos conseguir fazer isto?" "Vamos tentar, vamos tentar". E nova gargalhada na plateia.
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A experiência de adjunto com André Villas-Boas
A aventura no Dragão, no entanto, começou no papel de adjunto de André Villas-Boas, em 2010/11. Uma experiência que não foi fácil de aceitar, admite. "Com a minha personalidade, foi muito difícil aceitar ser adjunto. Só tinha visto o André uma vez na vida. O FC Porto é que me convidou. Telefonaram-me a dizer: "este é o momento em que o clube precisa de ti". Na altura eu tinha um convite do Paços de Ferreira e já era um treinador principal, não foi fácil aceitar. Mas lá me convenceram". Depois, a coabitação com Villas-Boas acabou por correr da melhor forma, numa época em que os dragões "limparam" praticamente tudo - campeonato sem derrotas, Liga Europa, Taça de Portugal, só faltou a Taça da Liga. "Acho que nos encaixámos bem. Abdiquei de mim próprio, mas também aprendi muitas coisas. Procurei complementá-lo, sustentar as ideias dele. O meu trabalho foi sobretudo ajudar a ter uma equipa equilibrada em tudo. Depois ele convidou-me para o Chelsea e para o Tottenham, mas aí já não podia mais continuar como adjunto. Quando sabemos que estamos prontos para ser treinadores principais, temos que seguir em frente".
O dinheirinho da Arábia
Vítor Pereira seguiu em frente também depois dos dois títulos no Dragão (três, contando o do primeiro ano como adjunto). E aí começou a entrar naquilo que o próprio reconhece como uma espiral de "opções" discutíveis. Na Arábia Saudita, passado pouco tempo de lá estar (no Al-Ahli), deu por si a pensar: "Como é que eu há pouco tempo estava a jogar uma Champions e agora me vim meter aqui?" "Mas claro que ao fim do dia já estava ganho mais um dinheirinho", lembra, com o sorriso de novo no canto da boca. "É verdade, tive que pensar no dinheiro. Mas no fim da primeira época, tinha ainda mais um ano de contrato e vim-me embora. Não aguentei. Deixei de sentir as borboletas no estômago, sabem? Perdi a paixão. Agora perdi [o processo] e vou ter que lhes pagar, mas pronto..."
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Grécia e Turquia, o futebol-coração
Depois seguiram-se Grécia (Olympiacos) e Turquia (Fenerbahçe): "As minhas opções são um espetáculo." E se já o tinha percebido na Arábia Saudita, ficou então completamente convencido de que, tal como o homem, o modelo de jogo não vale por si só. É ele e as suas circunstâncias. Neste caso, as especificidades culturais de cada país. "Eu gosto de um futebol organizado, de posse, de controlo absoluto. Mas na Grécia e na Turquia o futebol é sobretudo coração. Lá o futebol ultrapassa em muito as fronteiras do que se possa imaginar", disse - curiosamente no mesmo dia em que foi condenado, na Grécia, a oito meses de prisão com pena suspensa, na sequência de provocações aos adeptos do AEK Atenas, em 2015, numa partida da Taça.
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Frustrado na Alemanha
Até que chegou, na última temporada, o TSV 1860 Munique, a pior de todas as experiências, que acabou numa descida à terceira divisão quando o sonho inicial passava por começar um projeto de ataque à Bundesliga. "Um treinador frustrado frustra. Foi o que me aconteceu agora em Munique. Quem não tiver técnica não pode jogar futebol, meus amigos, não pode. O plantel não tinha nada a ver comigo, tive que dar vários passos atrás no treino. Normalmente dedico grande parte do meu treino à organização ofensiva e depois à transição defensiva. Na Alemanha, tive que treinar mais a organização defensiva e a transição ofensiva. Enfim, fui eu que escolhi ir para lá. Foi um risco. E caí. Mas já me levantei outra vez e estou pronto. Tem de ser", concluiu o orador Vítor Pereira.
Fora da sala do congresso, perante os jornalistas, fechou-se em copas sobre o futuro. E sobre o FC Porto, apenas o desejo de boa sorte a Sérgio Conceição.