Ainda a propósito da meritocracia

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Quem está no espaço público - e, sobretudo, quem dá opinião - sabe que, em Portugal, há um velho hábito (que as redes sociais vieram acentuar) de catalogar as pessoas. Ou se é de esquerda ou se é de direita. Ou se é intelectualmente superior ou não se passa de um populista demagógico.

Vem isto a propósito das reações ao discurso de João Miguel Tavares no 10 de Junho. Já concordei e discordei dele várias vezes. Já li coisas que me pareceram totalmente injustas, pouco fundamentadas, contraditórias e até já o vi cuspir no prato onde comeu algumas vezes. Mas também já me identifiquei com algumas das coisas que disse, com a forma como olha para o país, para a política e para os partidos.

Do discurso que fez no 10 de Junho, retenho o alerta para um Portugal pouco meritocrático. Descontando algumas ideias mais falaciosas, João Miguel Tavares tem razão, no essencial, quando fala de um país ainda muito desigual, muito preso à cunha, ao tráfico de influências e, consequentemente, à corrupção.

Mesmo reconhecendo - como reconheço - que, em 45 anos de democracia, já se fez muito caminho, o mau exemplo continua a vir de cima. Do Estado. Do poder central ao poder local, sem nunca esquecermos os pequenos poderes. Basta ver as notícias das últimas semanas sobre as investigações judiciais que decorrem em várias autarquias do país. Basta olhar para o histórico dos últimos anos no setor financeiro em Portugal para percebermos que há portugueses a quem todas as regras se aplicam e outros que nunca conheceram outra regra na vida que não fosse cumprirem os seus interesses. Basta olhar para a forma como o Estado trata os contribuintes que vivem de um salário e a forma como trata os que ganham um salário nosso por minuto.

A velha e estafada frase portuguesa do "ninguém enriquece a trabalhar" entranhou-se como se se tivesse transformado numa verdade absoluta, que poucos conseguem contrariar. Mesmo que ela já tenha sido mais verdadeira no passado do que é hoje. Em Portugal, os contribuintes continuam a ser tratados como uma fonte de rendimento inesgotável do Estado, que nunca seca. Haja criatividade e o Estado encontrará sempre novas formas de cobrar uma, duas, três vezes pela mesma coisa. Se a palavra taxa não chegar, acrescentem-lhe um "sobre" que parece logo diferente. Chamem "especial" ao imposto que já ninguém estranha. Argumentem que é temporário e pode ser que um dia já ninguém se lembre disso. Mas a perversidade do Estado vai mais longe.

Trabalhar muito, em Portugal, claramente não compensa. Se, com um emprego, uma parte substancial do salário é para perder de vista (entre fisco e segurança social), com duas ou mais fontes de rendimento, qualquer português de classe média baixa arrisca-se a ser considerado rico aos olhos do Estado. Portanto, quem não quiser fugir aos impostos, mais vale estar quieto, que este país não é para pessoas que produzam muito ou cujos méritos profissionais sejam muito requisitados.

Seria, no entanto, injusto, considerar que o problema da meritocracia - ou da falta dela - se sente apenas ao nível do Estado. Ele é também gritante no setor privado. Não faltam empresas em Portugal sem qualquer cultura de empresa, geridas por gestores sem qualquer capacidade de gestão, cujo principal critério de recrutamento é o lambe-botismo, os fura-vidas que já enganaram vários e continuam a enganar outros tantos, os medíocres que se vendem bem e que se perpetuam, apesar dos curtos resultados que entregam. O resultado disto é evidente em vários setores: empresas zombies que desvirtuam o mercado e acabam quase sempre da mesma maneira: a destruir a vida dos milhares que atiraram para o desemprego. Mas que não aprendem. Nunca aprendem.

E portanto, sim, há muito caminho a fazer em Portugal para que o mérito seja um dos principais critérios - não pode ser o único - do chamado elevador social. Um país com mais igualdade de oportunidades, mais exigente e, sobretudo, mais justo. A tarefa é árdua e implica coragem para reformar o nosso sistema de ensino, um esforço para colocar a economia a crescer de forma mais sustentável e uma capacidade, que claramente não tem existido, de os partidos políticos se reinventarem.

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