Ainda a barbárie
O conflito israelo-palestiniano teve nos últimos dias mais um episódio, dramático, visceral. Independentemente das suas causas, do lado de que nos sintamos mais próximos, da racionalidade que queiramos impor como pauta de leitura mais distanciada, é muito difícil fugir à violência que significam bebés decapitados em 2023.
Não é novidade, sequer, no plano da violência. A Europa dita civilizada, de militares louros e cintilantes, teve-o, em pleno século XX. O regime de Pol Pot também, umas décadas passadas, arremessadas crianças de colo contra troncos de árvores à frente de seus pais. E tem-no agora também aquela zona solarenga de drama que é Israel e a Faixa de Gaza. O objetivo é, naturalmente, o mesmo e estruturalmente terrorista. Amedrontar a um ponto que iniba a reação racional e desloque qualquer conflito para a loucura mais epidérmica que, no limite, pode quase ser a anomia na reação e no entendimento da realidade.
Não é estranho que, agora, se siga um período, seguramente longo, de conflito mais evidente, mais sangrento, mais vingativo. Quando um dos Estados do mundo que mais gasta em defesa e segurança é atacado desta forma, não poderá ser outra a reação.
O objetivo do terrorismo é precisamente o de dar projeção a uma realidade, pelo espetáculo que cria a propósito do mal. As pessoas, a vida, as ligações supostamente partilhadas entre seres humanos são apenas instrumentais nessa lógica. Este novo 11 de Setembro, mesmo que disperso por povoados no meio do pó e da areia, numa zona longínqua e incompreensível para muitos, vem reforçar aquela que parece ser a irremediável cisão entre povos sempre próximos na história - e sempre inconciliáveis.
Como pode o mundo responder a isto? Deve fazê-lo?
Sim, pode e deve. As Nações Unidas e o seu acervo de direito internacional e humanitário, se não servirem para arbitrar com eficácia estas distorções à vida pacífica da comunidade internacional, no seu expoente máximo, para pouco servirão. Dir-se-á, sempre, que é quase impossível apaziguar a vindicta, forçar tranquilidade, anular ódios e objetivos de vida, passados entre gerações, entre governos, entre Estados. Para mais, o Ocidente, colocado entre a sua má consciência nascida do seu antissemitismo histórico e das consequências extremas a que o levou no século XX, e a distância civilizacional que sempre manteve dos regimes islâmicos teocráticos, tem grande dificuldade em lidar com o tema, de forma coerente e unívoca, dependente também da energia e do dinheiro que por aquelas terras grassa.
Perante este tipo de dilemas históricos, uma solução adotada tem sido a do pragmatismo e a de procurar resolver subtema por subtema, questão por questão, evitando as grandes cisões e os grandes desafios. Isto significa, por exemplo, evitar temas como o da legitimidade. Qual a legitimidade que pode justificar a mortandade de crianças, jovens, civis, surpreendidos numa manhã de sábado? Absolutamente nenhuma. Mas, se há um tempo em que a diplomacia pode justificar o seu valor e o seu sentido, é seguramente este. Com o leste da Europa em fogo e com a bacia do Mediterrâneo a arder, tudo se anuncia difícil, equívoco, imprevisível. Por isso são precisos estadistas e negociadores, mesmo quando parece que só são necessárias mais armas e mais soldados.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa