Ai aguenta, aguenta

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À morte ninguém escapa,
Nem o rei, nem o papa,
Mas escapo eu.
Compro uma panela,
Custa-me um vintém,
Meto-me dentro dela
E tapo-me muito bem,
Então a morte passa e diz:
- Truz, truz! Quem está ali?
- Aqui, aqui não está ninguém.
- Adeus meus senhores, passem muito bem.

Fazer previsões nos dias que correm é como tentar antecipar o dia da nossa morte. Sabemos que vai acontecer, só não sabemos quando. Sabemos que esta pandemia vai passar, só não sabemos quando. Sabemos que a vacina vai aparecer, só não sabemos quando. Sabemos que a crise económica um dia vai desaparecer, só não sabemos quando. É, talvez por isso, recomendável, nesta fase, evitar frases muito definitivas. E meter na cabeça que nós, enquanto sociedade, enquanto país, enquanto humanidade, vamos ter de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para ultrapassar esta crise. Custe o que custar. Porque disso depende a nossa sobrevivência.

Vem isto a propósito das declarações de António Costa - que são já uma réplica de outros responsáveis políticos lá fora - de que o país não aguentará um novo confinamento. Parafraseando o mítico banqueiro Fernando Ulrich: "Se tiver de ser, ai aguenta, aguenta." Se for preciso salvar vidas, o país pode mesmo ter de voltar a fechar portas e não há economia ou política que se sobreponha à vida humana - pelo simples facto de que sem pessoas não há economia.

Já que a próxima semana é propícia a balanços - o Parlamento debate o Estado da Nação -, talvez esta seja uma boa oportunidade para refletirmos sobre o modelo de sociedade que temos e a que queremos ter. Sobre uma economia que produz mais dívida do que riqueza e está assente em estacas de madeira podre. Ou sobre as democracias cada vez frágeis e permeáveis a oportunistas disfarçados de frontais personagens.

Talvez esta seja uma oportunidade única para debater o papel do Estado e a importância que tem na sociedade e na economia. Talvez esta seja uma derradeira oportunidade para voltarmos a colocar as pessoas no centro das prioridades.

Por irónico que pareça, foi a globalização que tornou esta pandemia tão letal. Nós, que nunca quisemos ser de um país, de um continente, mas do mundo, vemo-nos agora encurralados por um vírus que não escolhe países, cores políticas, não deixa imunes nem democracias, nem ditaduras, nem populismos. Mas se isto é uma inevitabilidade, tudo o resto não tem de ser.

Se há uma lição importante a retirar desta pandemia é que ela segue um padrão traçado pelo próprio Estado: mais forte com os fracos e mais fraca com os fortes. São os mais vulneráveis da sociedade que sofrem mais. Os mais pobres, os mais velhos, os excluídos, os "párias" que foram sendo ignorados durante anos.

Já que a crise de 2008 deixou tudo na mesma, talvez seja inteligente utilizar estes dias, semanas, meses - os próximos anos, se for preciso -, para refletirmos sobre o modelo de sociedade que queremos reconstruir. Não desdenho dos grandes planos de recuperação económica, dos investimentos públicos, dos milhões de euros que vão começar a sair das rotativas do Banco Central Europeu. Mas nada disso servirá de muito se não voltarmos a chamar pessoas aos que até agora chamamos de contribuintes. De pouco servirá retomar a "normalidade" se ela continuar a ser anormalmente desigual. Se não o fizermos por outro motivo, pelo menos que o façamos por respeito aos milhares de vidas que se perdem com este vírus.

Jornalista

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