Ahmed, Zahid e Chandra ou o regresso da mercearia de bairro

Iam todas acabar por causa dos hipermercados e dos seus preços imbatíveis, da desertificação dos centros das cidades, da idade dos proprietários e do desinteresse dos jovens pelo negócio. E foram acabando. Até que, surpresa, voltaram. Em força e com donos nepaleses, bangladeshis, paquistaneses, indianos. Bem-vindos às novas mercearias de bairro.
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"Curvo-me perante o deus em ti." Namaste, a saudação ritual usada no início de uma conversa na Índia e no Nepal - um "olá como está" derivado do sânscrito e frisando a transcendência que vive em cada pessoa - foi o nome escolhido para a mercearia que os nepaleses Chandra Datta Kandel, 41 anos, e Narayani Kandel Lamichhane, 31, marido e mulher, exploram na Rua dos Fanqueiros, na Baixa Pombalina. A tabuleta, no entanto, só tem seis meses. Quando a loja abriu, há dois anos, era um bem pouco poético corredor forrado a azulejo e luz branca, percorrido por estantes e com caixotes de produtos frescos ao centro, no chão. Foi a expansão para o espaço ao lado, com o quíntuplo da área e uma montra, que permitiu enfim conhecer-lhe o nome.

É a segunda mercearia detida por asiáticos a abrir nesta artéria; a primeira, muito festejada pelos residentes da área pela qualidade da sua fruta e legumes e pelo horário alargado, fechou há um par de anos, quando os senhorios aumentaram a renda. Chandra, porém, não se queixa da sua: "Apesar de a Baixa ser muito turística ninguém quer abrir nada nesta rua. Está morta. Por isso não é muito caro." O seu português hesitante chega para o atendimento, mas para entrevistas este casal que emigrou primeiro para a Dinamarca, em 2008, chegando a Portugal em 2010, prefere o inglês - se bem que também não muito fluente. Foram para a Dinamarca estudar, contam. Mas, queixam-se, saía muito caro. "Tínhamos de pagar 10 mil euros por ano para estar na universidade ou ficávamos ilegais. E é um país muito frio. Aqui o clima é mais parecido com o nosso. A vida não é fácil mas é melhor." À chegada, Narayani, já com uma filha de 5 anos (agora com 10, e à qual se juntou um menino de 4), foi "tomar conta de um bebé numa casa". Ele foi trabalhar num restaurante. "Era muito trabalhoso. Aqui também é mas não tenho gente a dizer-me o que fazer."

Os estudos, que teriam sido a razão para abandonar o seu país, onde a família também trabalha no comércio, parecem ter sido esquecidos. À exceção, claro, das crianças: a filha Kriti está na escola Gil Vicente, na Graça, e tem explicações de português com um imigrante que domina as três línguas (a nepalesa, a inglesa e a do país de acolhimento). Uma educação europeia que poderá mais tarde colidir com a por ora firme determinação dos pais de regressar à pátria - ainda que sem previsão de data. "Queremos voltar, temos lá toda a nossa família. Mas ainda é cedo para dizer quando."

Enquanto dura a conversa, entram várias pessoas. Umas vêm para comprar água, sumos, cervejas, gelados, outras entram para ver o que há, outras só querem tabaco. A maioria são turistas, mas também há lisboetas. "As pessoas que vivem aqui vêm sobretudo quando têm uma emergência - falta-lhes qualquer coisa a uma hora tardia. Mas nesta zona não há muitos residentes, muitas casas estão vazias", comenta o comerciante. É verdade: do outro lado da rua, um pouco mais acima, na direção da Praça da Figueira, um quarteirão inteiro aguarda a transformação em hotel; algumas portas depois do Namaste Nepal, outro hotel novo em folha. "O que vendemos mais? Água, sumo, cerveja. Vinho também mas menos, porque há aqui perto muitas garrafeiras. E também temos produtos indianos. Legumes e fruta temos mas pouco porque há na zona vários supermercados." E horas? "Temos licença para funcionar até às duas da manhã mas fechamos à meia noite. A partir das dez há muito poucos clientes." Dinheiro para o negócio veio de onde? "Mandámos vir da nossa terra e amigos nepaleses que têm cá restaurantes ajudaram com crédito. E os fornecedores também vendem a crédito: só temos de pagar a 90 dias. Se trabalharmos bem toda a gente dá crédito."

"Clima igual ao do Bangladesh"

E trabalhar Chandra e Narayani trabalham - os sete dias. "Não podemos estar aqui os dois por causa dos miúdos, por isso temos um empregado que trabalha das 09.00 às 19.00. Mas somos nós que fazemos as noites." Os horários serão, aliás, uma das chaves do sucesso, se sucesso há. E deve haver, porque as mercearias como a do casal Kandel se multiplicam no centro da cidade, e por vezes na mesma zona. É o caso: a duas ruas daqui, na dos Correeiros, Zahid Hossad, 49 anos, bangladeshi, explora há cinco anos o mesmo tipo de negócio com o mesmo tipo de horário. Ao contrário dos Kandel, veio sozinho: os três filhos - de 17, 15 e 9 anos - ficaram lá, no Bangladesh, com a mulher e o resto da família, enquanto o pai, que veio "por Itália", onde esteve dois dias, abria primeiro uma loja de telemóveis, no Martim Moniz, e depois esta mercearia. E, também ao contrário dos Kandel, não quer voltar ao seu país. "Politicamente o Bangladesh é muito mau", justifica, embora sem conseguir explicar porquê. Quer, por esse motivo, trazer a família para cá, "onde não há corrupção, não há guerra, o clima é bom, igual ao nosso, e as pessoas são simpáticas." A exceção, debitada, por ironia, quando lhe é perguntado se sente algum tipo de discriminação por ser estrangeiro e asiático, "são os ciganos: estão sempre a roubar".

Claramente, Zahid, que tem três empregados a quem assegura pagar o ordenado mínimo, nunca ouviu falar da polémica que há um ano agitou, a propósito de um texto da historiadora Raquel Varela, as redes sociais. Varela, que se afirma de esquerda, descreveu em outubro de 2014 as mercearias asiáticas, que acusou de "fazer dumping" (de preços e salários), como "uma praga": "Que, como qualquer praga, arrasa com a diversidade, descaracteriza a cidade e contribui - pela pressão dos preços baixos - para substituir lojas de qualidade, com produtos frescos e diversos, alguns ainda do produtor ao consumidor, por produtos de baixa qualidade, junk e fast food." Ora, como qualquer pessoa que viva no centro da cidade sabe, as mercearias asiáticas podem ter substituído, por venderem o mesmo tipo de coisas, outras lojas (as mercearias ditas tradicionais), mas não houve qualquer relação de causa e efeito entre o aparecimento das primeiras e o fecho das segundas. Que terá ocorrido por motivos diversos - da alegada concorrência esmagadora dos hiper e supermercados à desertificação dos centros, passando pela idade elevada dos comerciantes que, à medida que se reformavam, não encontravam interessados no negócio. Quanto à "descaracterização da cidade", é certo que de modo geral estas lojas não demonstram qualquer preocupação estética com as características da zona em que se inserem. Mas o mesmo é verdade para a esmagadora maioria dos comércios que abrem na Lisboa antiga. Acusar disso só os imigrantes é, além de injusto, perigoso. E ignora o essencial da história: estes comerciantes respondem a uma necessidade ou não prosperariam.

"Estas mercearias, que pelo prolongamento do horário são lojas de conveniência, funcionam para novos públicos e consumidores que fazem compras "fora de horas". Não são muito mais caras e estão ali à mão", frisa o sociólogo Fernando Luís Machado. "Isto corresponde muito aos novos estilos de vida urbanos e vem desmentir a ideia de que o pequeno comércio local já não fazia sentido." Machado, que tem trabalhado sobre imigrações, reconhece que as alterações da paisagem social nos centros da cidade, do qual fazem parte estas formas de empreendedorismo imigrante, são um fenómeno ainda pouco estudado. "Os asiáticos estão em contratendência no declínio da imigração (ver texto ao lado) porque, estando o trabalho por conta de outrem em crise, se dedicam sobretudo ao por conta própria."

"Há pessoas a dar os parabéns"

Meraz Ahmed, 29 anos, é outra das ilustrações disso. Bangladeshi, desembarcou em Portugal no mesmo ano que os outros entrevistados - 2010, já em plena crise mundial e do euro -, depois de ter estado quatro anos em Inglaterra. O curso de Química incompleto, que frequentou no seu país, fá-lo um inopinado dono da mercearia que abriu com dois amigos ao pé da Sé de Lisboa, no número 20 da Rua Augusto Rosa, onde antes funcionou uma loja de antiguidades. Sorri. "As pessoas chamam-me indiano. Algumas dão-me os parabéns, pensam que é bom para elas esta loja existir. Outras dizem que é caro. Queixam-se por exemplo de que vendo a água a 60 cêntimos. Mas nos cafés custa um 1,40 [nem de propósito, uma turista paga uma garrafa pequena com um euro e está a ir-se embora quando a chama para dar os 40 cêntimos de troco]." Abana a cabeça. "Aqui sinto mais discriminação do que em Inglaterra, lá há muito mais diversidade." Com o primeiro filho a caminho (a mulher, também do Bangladesh, veio direta para Portugal no âmbito da reunião familiar), Meraz planeia voltar à escola para terminar o curso. "Aqui não estou a perder dinheiro, mas é um trabalho muito duro. Trabalho seis dias por semana. Hoje comecei ao meio-dia e vou acabar à meia-noite."

Será isso, conclui Chandra Kandel, o nepalês da loja da Rua dos Fanqueiros, a justificar que as mercearias asiáticas tenham êxito onde as tradicionais falharam. "Os portugueses não querem saber dos clientes. Abrem e fecham àquela hora, não interessa que as pessoas precisem de outros horários. Como nós trabalhamos sete dias em vez de cinco e muito mais horas, vendemos mais e portanto fazemos um pouco mais de dinheiro. Sobrevivemos com mais facilidade." Reflete. "E além disso os portugueses jovens não querem fazer isto. Só as pessoas mais velhas o fazem, e essas não sabem falar inglês. E numa zona como esta é preciso, por causa dos turistas."

Imigração asiática em contraciclo

Os imigrantes de origem asiática são uma das exceções ao pronunciado declínio na imigração verificado entre 2008 e 2014: no período, o seu número aumentou de 28 425 para 42 852, ou seja, mais de 50%. O acréscimo, o mais expressivo de todo o contingente de imigrantes (incluindo os da UE) foi mais acentuado nos chineses (mais 60%, de 13 313 para 21 402) do que nos do resto da Ásia (42%, de 15 112 para 21 450).

Um estudo de 2012 (Diagnóstico da População Imigrante em Portugal) do Alto-Comissariado para as Migrações releva esta tendência: "Digno de nota é o crescimento lento, mas contínuo, dos cidadãos da Ásia que, representando menos de 4% [da população estrangeira documentada] em 1990 (cerca de 4 mil pessoas), tinham chegado aos 5,3% em 2005 (cerca de 22 mil pessoas) sendo as principais origens geográficas a Índia, a China, o Paquistão e o Bangladesh." Em 2011, o referido estudo contabilizava assim esta população: 16 785 chineses, 5384 indianos, 2474 paquistaneses e 1149 bangladeshis (em 2014 eram 6421 os indianos, 2785 os paquistaneses e 2075 os bangladeshis). O evidente desencontro com os números do SEF - este em 2008 certificava existirem 15 112 asiáticos não chineses em situação regular no país, enquanto a soma das nacionalidades referidas pelo ACM para 2011 resulta em 9007 - explica--se com a existência de imigrantes de outros países asiáticos, como os nepaleses (que em 2014 o SEF refere serem 3544) e os tailandeses (1169); as outras nacionalidades asiáticas, das quais a mais numerosa é a dos naturais do Usbequistão (1024 pessoas), somam 5806 indivíduos. Certo é que a tendência evidenciada pelo estudo do ACM se reforçou: os imigrantes asiáticos em Portugal rasavam já em 2014 os 11% do total de imigrantes regularizados (395 195), registando, de 1990 para 2014, um aumento de quase mil por cento.

A maioria destes imigrantes fixa--se em Portugal continental. Para os não chineses, no período 2008-2014, a preferência é para a região de Lisboa, onde se encontram mais de 50% (13 583). Segue-se o Centro (2484), o Algarve (1999) e o Norte (1944). Curiosamente, a zona onde o número mais subiu, proporcionalmente, foi o Alentejo (de 592 para 1245, ou seja, mais de 110%).

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