Agora é que são elas!
Estão a dar a volta ao mundo as imagens daquele troglodita com pinta de porteiro de discoteca. Na tribuna do estádio, diante das câmaras e ao lado de suas majestades a rainha e a infanta, agita freneticamente os genitais para gritar vitória. E minutos depois agarra uma das novas campeãs pela cabeça para lhe espetar os beiços na boca, sem pejo seu, nem o consentimento da atleta.
A seleção espanhola de futebol feminino tinha acabado de se sagrar Campeã do Mundo, perante mais de 75 mil pessoas no Accor Stadium de Sidney, na Austrália, e sobretudo diante de muitos milhões de espetadores pela televisão. E o que seria a celebração de um êxito desportivo e, para muitos, mais um passo na luta pela igualdade entre homens e mulheres (porque, afinal, o "futebol também é para meninas"), ficou reduzido às imagens de uma exibição de machismo e ao beijo forçado nos lábios surpresos de uma das vencedoras. Os gestos de Luis Rubiales, ainda presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, eclipsaram um momento histórico do desporto naquele país, com uma catarata de reações condenatórias, também na política, mas sobretudo nas redes sociais em todas as latitudes. E digo ainda, porque, à hora em que vos escrevo, decorre uma assembleia-geral para debater a mais que provável demissão do presidente, entretanto suspenso por 90 dias, pela FIFA. Isto, enquanto a mãe do dirigente desportivo se refugia em greve de fome numa igreja, clamando pela inocência do filho vitimado pelo "poder inquisitorial do feminismo". O mesmo feminismo (movimento #Me Too) que, conectado há anos através das redes, destapou os meandros encobertos do abuso de poder, do assédio e da violência sexual: no cinema, na rua, nos locais de trabalho, entre casais: milhares de mulheres contando e contando-se, e reconhecendo-se no espelho quando se olham umas às outras.
No mundo do futebol, nada, até agora, tinha ameaçado tanto o poder de Rubiales como presidente da Real Federação: nem as acusações de peculato, nem as de cobrar comissões, nem as denúncias por usar dinheiros associativos para pagar orgias, e nem muito menos o protesto de jogadoras por desigualdade no tratamento. Nada, até àquele momento em que meio mundo testemunhou, em direto e ao vivo, como um beijo roubado na boca de uma atleta faz vacilar o sistema patriarcal, misógino e machista, e logo numa das suas trincheiras mais blindadas: o futebol. E nem era preciso que a jogadora tivesse vindo dizer que se sentiu chocada com o beijo não-consentido. As imagens deram a volta ao mundo, as redes sociais entraram em ebulição, e a consciência feminista, que tem ensinado as sociedades a reconhecer e denunciar a violência e as relações de poder, ativou uma cascata imparável. Em apenas seis dias, o feminismo interiorizado pela sociedade espanhola derrotou de vez Rubiales.
O Me Too espanhol culminou no final da semana num estrondoso "Se acabó!" (basta!), escrito pelas jogadoras da seleção Campeã do Mundo, para mostrar o seu apoio à companheira abusada. Este pronunciamento, que se transformou de forma viral em palavra-chave do movimento feminista, carrega uma mensagem poderosa: as mulheres dizem basta ao abuso de poder, e a maioria da sociedade espanhola parece estar com elas. Alguns dos patrocinadores da federação já entenderam a mensagem. Em contraste, a reação demonstrada por grande parte dos dirigentes da federação ao aplaudir Rubiales, juntamente com o silêncio cúmplice de demasiados jogadores e clubes de futebol, convida-nos a refletir sobre os ares que é preciso fazer soprar na indústria que vive do desporto-rei. Em Espanha como cá, e em todas as latitudes. Acontece que este "Se acabó!" vai muito para além do desporto: é o grito definitivo das mulheres que dizem basta e que nos interpela a todos, meio século depois de Marilyn, um dos maiores ícones sexuais da indústria do cinema, para várias gerações, denunciar que lhe pagavam mil dólares por um beijo e 50 cêntimos pela alma.
Jornalista