Agatha Christie: a mulher que matava para ganhar a vida
Podemos imaginá-la como anfitriã, na sua mansão de Devon, fazendo servir o chá das cinco e tentando criar pontes de conversa entre Hercule Poirot, sempre aperaltado, fato completo e polainas, e de bigode impecavelmente encerado, e Miss (Jane) Marple, velhinha gaiteira, carregada de laços e rendas.
Afinal, Agatha Mary Clarissa Miller, com o apelido Christie herdado do primeiro casamento, mãe de outras personagens como Parker Pyne ou Tommy e Tuppence Beresford, devia ao detetive belga (33) e à idosa de St. Mary Mead (12) mais de metade dos seus romances de crime e mistério (total de 73), já sem contar com os contos curtos - 54 para Poirot, 20 para Marple.
Decidiu, contrariando os pedidos de muitos leitores, nunca os juntar: nenhum deles sabia da existência do "rival". Por razões de "incompatibilidade de génios", como explicou a autora: "Jane Marple talvez achasse graça se pudesse dar sugestões ou instruções a Poirot. Mas este sentir-se-ia profundamente infeliz se tivesse que lidar com uma amadora intrometida e faladora...".
Poirot viveu entre 1920, estreando-se em simultâneo com aquela que viria a tornar-se a escritora mais popular de sempre - com quatro mil milhões de livros vendidos, número que se calcula muito próximo do alcançado pelas obras de um tal William Shakespeare O Misterioso Caso de Styles, e 1975, ano da publicação de Cai O Pano - O Último Caso de Poirot.
Jane Marple teve um começo tímido, num conto de 1927, saltou para a ribalta em 1932, com Crime No Vicariato, e despediu-se em 1976, com Crime Adormecido, editado já depois da morte da autora.
Em boa verdade, a despedida das duas figuras já estava decidida há muito: Agatha Christie, prevenida, "matou" um e outra logo na década de 40, mantendo os manuscritos fechados num cofre, à espera do momento certo para acertar as contas.
Poirot, que é a figura central de quatro dos cinco melhores livros de Dame Agatha (O Assassinato de Roger Ackroyd, Um Crime No Expresso do Oriente, Os Crimes do ABC e Morte No Nilo), que passou pelos rostos dos atores Charles Laughton, Albert Finney (nomeado para o Óscar), Peter Ustinov e David Suchet (na TV) e até pela voz de Orson Welles numa adaptação radiofónica de Roger Ackroyd, pode gabar-se de ser a única personalidade de ficção com direito a um obituário de primeira página no New York Times.
A hegemonia Poirot-Marple acaba, ironicamente, quebrada por As Dez Figuras Negras (1939), que se tornou o livro policial mais vendido de sempre - 100 milhões de cópias. A autora confessaria nunca ter enfrentado tantas dificuldades para completar, com lógica e sem recurso ao sobrenatural (que nunca utilizou) um enredo em que todos os dez convidados para uma reunião numa ilha em que não há mais ninguém acabam por morrer. Mas em que há um assassino. Christie, bem poderá dizer-se, usou todos os truques, desde as mortes aleatórias para despistar, até à atribuição da culpa a um narrador ou a uma macabra aliança de todos os suspeitos.