"África não tem de ser guiada por valores antidemocráticos"
O que pode produzir para Cabo Verde nos próximos anos a convergência da presidência, governo e a esmagadora maioria das Câmaras nas mãos do Movimento para a Democracia (MpD)?
Produz muita responsabilidade. É também uma grande oportunidade para consolidarmos mais a nossa democracia. Fui muito claro sempre que esta questão da concentração de poderes foi colocada, tenho dito que não se trata disso, os poderes são diferentes: os municípios são uma coisa, o governo é outra coisa, o Parlamento tem as suas competências... E mais do que o aspeto formal é a nossa vontade de ter uma atitude diferente no exercício do poder de forma a garantir governação aberta, maior controlo da sociedade civil e participação da sociedade civil assim como instituições que funcionem, mecanismos efetivos de controlo e equilíbrio de poderes para que o Poder seja devidamente colocado ao serviço das pessoas e sempre na perspetiva de que estamos em serviço público. Esta tem sido a minha mensagem clara. Não há qualquer cenário de concentração de poderes e eventual excesso no exercício do poder.
Após 15 anos na oposição, o regresso do MpD ao poder é sinónimo de uma democracia consolidada, ou há ainda desafios a vencer?
Há ainda desafios e espaços para consolidar a nossa democracia. Democracia não é só eleições, transição pacífica de poder, instituições a funcionar. Há uma parte da democracia que precisa de ser reforçada, é a que tem a ver com o papel do Estado, a intervenção deste e da Administração Pública na relação com as pessoas, o respeito pelas preferências e simpatias partidárias sem qualquer intervenção para benefício ou para prejudicar quem tenha posições diferentes. Defendemos a neutralidade e a imparcialidade do Estado perante as preferências dos cidadãos. Isto para nós é fundamental. Em segundo lugar, defendemos que deve haver maior espaço para a sociedade civil. Isto quer dizer real autonomia e menor dependência perante o Estado...
Uma redução do papel do Estado?
O problema não é de tamanho do Estado, é o de um Estado que funcione bem, que crie condições para as pessoas serem livres. Ao falarmos de liberdade, estamos a falar também da necessidade da autossuficiência e autonomia das pessoas. A dependência cria a falta de liberdade e torna as pessoas mais suscetíveis de serem utilizadas para aproveitamento político-partidários pela ausência de condições de vida decentes e dignas entre as pessoas. É ainda necessário reforçar as instituições para que todo o mecanismo de funcionamento democrático seja de facto impulsionador do desenvolvimento de Cabo Verde. Fazemos sempre esta ligação: a democracia tem de casar com desenvolvimento porque é uma das condicionantes do próprio desenvolvimento.
Quando se fala em desenvolvimento considera-se que Cabo Verde deu importantes passos. Quais são as prioridades para o seu governo e que áreas identifica ainda como, digamos, deficitárias nesta matéria?
A grande aposta que Cabo Verde tem de fazer, assim como todos os países em desenvolvimento, é na área do conhecimento. Aí, persiste um fosso muito grande entre os países desenvolvidos e os restantes, desde logo no sistema educativo, na sua qualidade. Neste ponto, estamos a investir para que os jovens, à saída do 12.º ano, tenham fortes competências em línguas, domínio da ciência e da tecnologia, fortes conhecimentos humanísticos para serem cidadãos do mundo. Isto é a base de tudo e tem de ser feito de uma forma qualificada. Depois, criar todas as condições para que haja possibilidade de Cabo Verde ter um papel relevante em África, em termos de acesso aos mercados e daquilo que é o nosso posicionamento na defesa de valores fundamentais...
[destaque: Elevar o patamar da democracia]
Desde o fim do regime de partido único, em 1991, pode falar-se de Cabo Verde como uma referência, como tem sido dito, para o resto de África?
A estabilidade social, a estabilidade política de Cabo Verde são uma referência, mas se nós conseguirmos - e acredito que vamos consegui-lo - elevar o patamar da nossa consolidação enquanto democracia, e termos um pequeno país que consegue demonstrar que a democracia é uma das condições fundamentais para o desenvolvimento, um elemento de confiança interna que os cidadãos têm de confiar nas instituições e no Estado e em quem governa. Outro dado fundamental: a confiança externa nas instituições. E fulcral em democracia: a questão do exercício do poder. Se o poder estiver devidamente controlado por mecanismos de checks and balances [pesos e contra freios] , mecanismos judiciais, de regulação, de comunicação social, não há dúvida que estarão criadas as condições para que, de facto, a democracia se eleve e possa ter depois ligação com aquilo que as pessoas avaliam no final: o que é que isto significa na minha vida e na vida do país. Isto significa desenvolvimento.
Há países em África com muito mais recursos e que não parecem ter sido capazes de dar os passos de Cabo Verde. Qual é o fator que está a diferenciar a experiência do seu país?
É pelo facto de não termos recursos abundantes. O grande problema é transformarmos esses recursos naturais em educação, saúde, bem-estar, rendimento para as famílias, emprego. Se isso não for conseguido, quer dizer que os recursos servem para muito pouco. Ou servem, eventualmente, para uma minoria. Têm de se criar as condições que referi e Cabo Verde por não ter esses recursos naturais tem a vida facilitada. Mas mesmo que tivesse, acho que a via correta é fazer com que os recursos sejam apenas instrumentos para que os países possam criar condições de crescimento para beneficiar as pessoas.
Estamos a falar de uma espécie de revolução cultural em que é preciso combater a patrimonialização do Estado, como muitas vezes é referido a propósito de África e também de uma atitude diferente das elites de cada país...
Nós não temos dúvidas nenhumas de que é esse o caminho. O problema são as pessoas. Se estiverem numa envolvente em que haja educação, formação, liberdade, haja possibilidade de inovação, de investimento, as coisas acontecem. São as pessoas que fazem a política, que dirigem as empresas, desde cidadãos com responsabilidade de liderança a cidadãos comuns. A resposta está na boa envolvente política e económica, e nisto Cabo Verde pode dar saltos, para que sejamos bem apreciados e, ao mesmo tempo, ser um fator interno de desenvolvimento.
Quer dar alguns exemplos práticos desses patamares em que pretende colocar o país?
Um é o do exercício do poder. Nós indicámos que há algumas ruturas a fazer com determinadas práticas de partido-Estado que vigorou. Já houve evoluções muito positivas mas precisamos de dar o corte final, que é o de dizer a todos aqueles que estão ao serviço do público, que a sua função é a de serviço público, do primeiro-ministro ao servente. Serviço público controlado pelos resultados e pela forma como as pessoas exercem o poder. Isto cria condições para que possamos introduzir eficiência. E adotámos medidas muito claras para evitar a confusão entre o Estado e o partido, que nos autoimpusemos enquanto partido político, nomeadamente um conjunto de medidas de incompatibilidade. Por exemplo, quem for dirigente partidário ao nível da comissão política e da direção nacional ou de delegações locais não pode acumular cargos de direção da Administração Pública. Tem de escolher, ou é diretor-geral ou membro da comissão política. Isto para evitar que as pessoas levem a política para o local de trabalho. Também aqueles que desempenham cargos de chefia na função pública não são escolhidos para as listas eleitorais do nosso partido. Isto para impedir que as pessoas usem os cargos para se fazerem a lugares político-partidários.
Esses exemplos são excelentes mas acabam por refletir, em sentido oposto, aquilo que é a realidade comum em África, que é a da confusão entre as duas dimensões. Para utilizar uma frase de um intelectual cabo-verdiano, Baltasar Lopes da Silva, pode dizer-se a propósito do seu país: "Isto aqui não é África, é Cabo Verde!".
Cabo Verde é África e África não tem de ser guiada por valores antidemocráticos. Aquilo que nós queremos demonstrar é que é possível, que o fazemos por vontade própria, por convicção, de que este é o caminho mais curto para o desenvolvimento. O povo cabo-verdiano acredita que a melhor forma de governo é a democracia, zero tolerância para com a corrupção, que os recursos são escassos e num país com elevados níveis de pobreza é até uma questão de moral e de ética pública garantir que haja controlo desses recursos.
Ainda sobre a frase de Lopes da Silva e a tentativa de defender uma especificidade cultural do arquipélago, ainda tem sentido debater a questão?
O cabo-verdiano é claramente uma mistura. Somos uma nação, antes ainda de sermos um país, que se formou no cruzamento das populações africana e europeia, com 556 anos de história. Não contamos a nossa história a partir da independência. Temos história que vem desde a descoberta até agora, com várias fases. O que faz com que o cabo-verdiano se afirme mesmo, não é uma entidade política, é uma entidade cultural. E é isto que faz com que o cabo-verdiano seja reconhecido enquanto tal e esteja em paz consigo próprio em termos da sua história. E seja aberto ao mundo, cosmopolita, o que faz com que a sua cultura esteja presente, mesmo estando fora. Este é o fator cultural relevante que Baltasar Lopes e outros escritores puseram sempre em evidência. Esta é a especificidade de facto, é uma experiência única que se não se reproduz porque é Cabo Verde.
[destaque:Estabilidade na Guiné-Bissau]
A crise política e institucional na Guiné-Bissau preocupa Cabo Verde e que mecanismos de solução podem ser encontrados a nível bilateral, regional ou internacional como a CPLP?
Sim, preocupa-nos. E estamos bem presentes ao nível da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), ao qual pertencemos como a Guiné-Bissau, e procuramos que a normalidade institucional se afirme. Há muitos cabo-verdianos na Guiné-Bissau e alguns guineenses em Cabo Verde. Há todo o interesse em que haja estabilidade e o papel que podemos desempenhar, quer na CEDEAO quer na CPLP, é o de se conseguir instituições fortes e reguladas, que não estejam vulneráveis a posições pessoais. E Cabo Verde pode ajudar a criar um diálogo político profícuo para a normalização.
Tem havido algum debate sobre o futuro da CPLP, críticas e dúvidas sobre o caminho a seguir. Na perspetiva de Cabo Verde qual é o balanço que se pode fazer e que sugestões deixaria para o futuro da organização?
A CPLP é uma construção que faz todo o sentido, mas precisa de ter músculo estratégico. Cabo Verde vai ter a presidência da CPLP a partir de 2018 e pensamos dar uma contribuição positiva não só no espaço do diálogo político, que é profícuo, mas na vertente económica também. A língua, por si só, é um fator económico e precisa de ser valorizada. Cria mercado, cria relações, uniformiza produtos. Precisamos avançar mais nesta vertente e creio que com um mercado de mais de 250 milhões de consumidores no espaço CPLP, é um meio importante. E há processos paralelos, como o da UCCLA, que é um exemplo de como as coisas funcionam bem.
Ainda com o anterior governo de Cabo Verde, foi assinado com Portugal um plano estratégico de cooperação em numerosas áreas. De todos esses projetos, há alguns que estejam já em execução, por um lado, e por outro, considera a necessidade de rever alguns deles?
Os que estão em curso funcionam bem. Vamos ter a cimeira Cabo Verde-Portugal em fevereiro e vamos reforçar algumas vertentes: uma delas é a área ambiental, tendo em conta as necessidades de um pequeno país, como o nosso, com as suas vulnerabilidades têm de colocar a questão do ambiente no centro das atenções. As vertentes económica e empresarial vão estar também como vetor importante. A cultura e a segurança, nomeadamente na vertente marítima. Temos definido uma série de trabalhos com Portugal e na cimeira vamos definir....
Vigilância, exercícios conjuntos?
Vigilância e proteção de toda a zona económica exclusiva.
É o responsável por uma medida que alterou a economia de Cabo Verde: a indexação da moeda nacional ao escudo português e, em seguida, ao euro. Passados estes anos, é um mecanismo que continua a ser fundamental para consolidar, dar estabilidade e desenvolver a economia cabo-verdiana?
O acordo cambial celebrado em 1998 é ainda estruturante da nossa economia. Introduziu elementos de confiança nas relações comerciais e de investimento. A moeda cabo-verdiana não flutua em relação ao euro, obriga-nos a uma gestão mais disciplinada e rigorosa para defender essa paridade. Acabou por ser um elemento de referência que nós não tínhamos antes. A economia não funciona só com referências internas, precisávamos de referências externas para disciplinar as diversas políticas. E contribuiu fortemente para a estruturação da nossa economia e para a relação com o espaço europeu.
É uma solução para continuar?
É para continuar e queremos aprofundá-lo.
[destaque:Dupla circulação do escudo cabo-verdiano e do euro]
De que forma?
Com a possibilidade de convertibilidade da moeda cabo-verdiana, é uma ideia que vem do início, mas não se desenvolveu. E estudamos a possibilidade da dupla circulação da moeda do escudo e do euro. Mas a nossa economia ainda de precisa de regras normativas idênticas às normas europeias, até porque há uma área de convergências a observar para estabelecer a similitude do nosso normativo com o europeu. Há ainda que procurar novos espaços de convergência, mostrar que não há riscos, que é possível incorporar investimentos num espaço de proximidade da Europa como é Cabo Verde.
No quadro do acordo que está a ser negociado entre os países África-Caraíbas-Pacífico e a União Europeia, quais são os principais objetivos de Cabo Verde?
O figurino deve ser diferente conforme as regiões. Talvez seja assim mais eficaz, mas é na vertente do desenvolvimento que África precisa não só de recursos para investimentos. Nós entendemos que deve ser feita uma aposta forte no conhecimento. Às vezes, entidades como o FMI ou o Banco Mundial, vêm esses investimentos que não produzem bens materiais como não prioritários, mas nós acreditamos que é aí que se faz a diferença. A aposta deve ser num sistema de ensino de qualidade e no acesso a tecnologia, à ciência, a valores humanísticos e em todo o ambiente de investigação e pesquisa que acaba por criar condições de suporte ao desenvolvimento.
Está em preparação a introdução do estudo do português como língua não materna. Qual a razão de uma decisão desta natureza?
É apenas metodológica. As crianças nascem e falam crioulo, as pessoas não falam português no ambiente familiar, no ambiente de rua, essa é a diferença. E o que se tem feito até agora é tratar o português como língua natural, que não é. Tem de se aprender, e aprender bem. É claramente mais fácil aprender português do que francês ou inglês, mas o método de ensino é que tem de ser alterado. É só isso que vai suceder.
Mas as aulas estão a ser dadas em português.
E vão continuar a ser dadas em português. A nossa política é 12 anos de português, mas português. Dominarem a língua e serem fluentes. Esse é o pressuposto que não existe.
[destaque:Dar estatuto jurídico à Macaronésia]
Cabo Verde integra a Macaronésia (Açores, Canárias, Cabo Verde, Madeira), que importância tem a iniciativa para o arquipélago, não sendo ainda uma organização?
Estamos apostados em dar um estatuto jurídico ao espaço da Macaronésia, envolvendo as respetivas soberanias [Cabo Verde, Espanha e Portugal] e consagrando maior importância ao diálogo político, que já existe mas que deve ser aprofundado, além de maior acesso aos mercados, inclusive externos.
Em termos de investimentos?
A agroindústria é claramente uma área a explorar assim como o turismo. Tudo o que possa ser transacionado entre as diferentes ilhas e exportado principalmente para o mercado da CEDEAO, onde Cabo Verde tem facilidades de acesso e preferências comerciais, além dos Estados Unidos.
Sobre os Estados Unidos, pensando na posição geoestratégica de Cabo Verde, como definiria o estado atual das relações bilaterais e há áreas desse relacionamento a aprofundar?
Temos um campo vasto a ser desenvolvido, designadamente na área das segurança cooperativa. Cabo Verde tem, de facto, um papel importante pela sua localização geoestratégica e pela sua estabilidade política. E estamos a trabalhar com os EUA para construir uma aliança muito forte.
Um exemplo?
Vamos sediar a comissão multinacional do Golfo da Guiné, precisamente para termos uma função de vigilância marítima de toda aquela zona.
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