África minha

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África era a perna escavacada do meu padrinho numa sala na metrópole. A Guiné, por exemplo, apareceu-me pela primeira vez na tarde em que ele levantou as calças e, na penumbra dos cortinados, vi a carne amalgamada por um morteiro que não explodiu, mas que lhe estilhaçou vários ossos.

Com 5 anos, estranhei quando o meu melhor amigo me informou de que nascera em Angola. Disse-lhe, estupefacto: "Mas tu não és preto." Não sabia nada sobre África, nem sequer que a sua família - com a qual fiquei quando o meu pai viajou para Londres, para que a minha mãe tentasse sobreviver a um cancro - era uma família de retornados. Desconhecendo o que era um retornado, sabia, no entanto, que não gostava da sonoridade da palavra, daquelas sílabas machadas pela boca dos adultos, que não pareciam estar em sintonia com a suavidade com que aquela família me acolhera. O meu amigo vivia com os pais e os avós. A avó era mulata e o avô branco. Anos mais tarde, fui encontrar um livro de poemas que o avô escrevera e oferecera ao meu pai, com versos ferozmente anticomunistas, mas, no meio de tanto ressentimento e vontade de ajuste de contas, só uma frase me ficou: "cravos rubicundos".

África era o papagaio do avô do meu amigo, que passava o dia a assobiar, mas que muito bem podia ter sido ensinado a dizer, "Andámos lá nós a lutar para isto" ou "O Bochechas entregou aquilo de mão beijada", porque, durante anos, essas foram frases que fui ouvindo de muita gente, como o professor do 9.º ano, que não dava matéria mas passava as aulas a falar do que perdera em Moçambique, do Álvaro Cunhal e das suas próprias odisseias no mundo da fantasia: "Matei dois búfalos com uma bala só", "As estradas eram a perder de vista e sem curvas, até dormia ao volante nas viagens grandes." Mas Moçambique também era o meu amigo, numa nova escola, a quem chamávamos Zé Preto (não era José nem preto) e que brindávamos com a canção de guerra da série de TV Shaka Zulu, só porque ele nascera na Beira.

África eram as estátuas tribais, de pau-preto, que o meu pai oferecera à minha avó, e cujas mamas e carapinha eu ia tocar, passando os dedos nas curvas polidas como se pudesse antecipar o que só a adolescência traria. Luanda era tecida pelas histórias do meu pai, cidade onde fez a tropa, fotografias do seu caparro antes do paludismo, sempre sorrisos de brancos e de pretos nessas imagens, muito mais histórias engraçadas do que tiroteios no mato, um imaginário de filme de comédia que incluía os magalas a espiar uma senhora nua com um telescópio e um tipo chamado Maluco e Meio, que treinava cabeçadas nas portas.

Por um lado, havia a África da minha infância, filtrada pelos brancos e contaminada pela minha imaginação. Por outro, havia a África das guerras civis durante décadas a passar nos telejornais. Tudo meio distante, quase matéria de ficção. Foi preciso crescer para saber um pouco mais. África: já não o continente da ternura paternalista - "O teu pai salvou um pretinho de se afogar", contava-se na família -, já não o crime dos comunistas, mas as lágrimas de um oficial quando, numa entrevista, lhe perguntei sobre os soldados negros que combateram no lado português, e que ficaram para trás, na Guiné. Ou um desses soldados, contando como sobrevivera à prisão, anos após o fim da guerra: "Eramos cento e tal, só ficaram dezasseis."

Estudei numa escola de mil e tal alunos e, em grande parte dos anos que lá passei, só havia brancos. Fiz o meu primeiro amigo africano e negro aos 23 anos - o "Gazela do Mindelo". Como tal, sinto que, por mais que diga bué e coma cachupa e leia Ondjaki e viva numa das cidades mais africanas da Europa e tenha amigos que trabalham em Angola e Moçambique - "O meus filhos têm sotaque de lá", dizia um deles, orgulhoso -, parece-me sempre que África está muito mais longe de mim (de nós?) do que fazem crer os discursos oficiais de lusofonia e de pendor atlântico e de colaboração institucional.

No Rio de Janeiro, não muito longe do cais onde desembarcaram mais escravos em toda a história do tráfico negreiro, vi o documentário Kuduro, sobre os intérpretes do estilo musical que nasceu em Luanda. Miúdos novos, talentosos com o corpo e as palavras, cuja energia transbordava no ecrã: o presente e o futuro. Menos dor, mais prazer. Uma vida melhor, mais livre. Coisas simples que me fizeram perceber que, afinal, até entendo um pouco de África. Porque embora não conheça o cheiro dos embondeiros ou qual o tamanho dessas tardes longuíssimas, estou seguro de que a prisão do ativista Luaty Beirão torna evidente que lá, como cá, queremos a mesma coisa: pensar, debater e questionar sem acabarmos na prisão.

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