Afonso Anes Penedo. Herói da Primeira Revolução Portuguesa

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Há circunstâncias especiais em que determinadas acções extraordinárias mudam o curso da História. Sendo marcantes, de cariz individual e um exemplo para os vindouros, se relembradas em cerimónias oficiais fazem nascer o herói nacional.

Se pedisse aos portugueses que designassem os seus heróis pátrios, acredito que seria pura excepção, à regra, alguém mencionar o nome de Afonso Anes Penedo.

Pois bem, se Portugal é hoje um país independente bem pode agradecer ao tanoeiro Afonso Anes Penedo cuja acção, na Primeira Revolução Portuguesa, perante uma situação complicadíssima, extremamente tensa e de prolongado impasse, foi decisiva e determinante para a defesa da causa da independência nacional.

Após desistir de fugir para Inglaterra, D. João, Mestre de Avis, comunicou, a Álvaro Pais e aos membros mais destacados da cidade de Lisboa, a sua decisão de permanecer em Portugal, caso descobrissem uma boa e consistente saída para a situação política criada com a fuga da rainha D. Leonor e do seu governo para Alenquer.

Reunida de urgência, depois de prolongadas discussões, a amedrontada cúpula dos representantes citadinos lisboetas, composta por cidadãos mais proeminentes e por escassos nobres, acordou uma solução de compromisso, no essencial, por ter medo da rainha e por desejar evitar uma nova guerra com Castela.

Nela propôs o casamento do Mestre de Avis com a rainha D. Leonor. Ela continuaria a deter o regimento do reino e os dois seriam regedores. Quando, aos 14 anos, o filho da rainha D. Beatriz e do rei de Castela começasse a reinar, o Mestre seria Governador, o principal do reino e do Conselho Real.

Os proponentes acreditavam que assim haveria paz em Portugal, eles seriam perdoados pela rainha e, face aos benefícios da solução encontrada, o papa daria dispensa para a realização do casamento.

Em cumprimento da execução dessa proposta conciliatória, avalizada pelo Mestre, é escolhida a delegação a ser enviada a Alenquer, composta pelo nobre Álvaro Gonçalves Camelo e pelo cidadão Álvaro Pais. A moção vencedora revela que a nobreza e a burguesia, com medo de represálias, procuravam obter o perdão e desejavam fazer as pazes com a rainha.

A prudente rainha, com mais pudor que os proponentes, aceita a solução de compromisso, excepto a cláusula do casamento com o Mestre.

Segundo Fernão Lopes, a um escudeiro, que pretendia acompanhar os embaixadores até Lisboa, o conde D. João Afonso Telo, irmão da rainha, aconselhava a não fazê-lo porque, dizia ele, estando Castela contra Portugal e Portugal contra si mesmo, era uma sandice acreditar que o levantamento feito por dois sapateiros e dois alfaiates, querendo tomar o Mestre por senhor, pudesse ter seguimento. Daí que, nem que fosse para garantir a segurança dos seus bens, devia esquecer a capital e acompanhar a rainha.

O escudeiro, casado em Lisboa, replicava:

- Nunca se viu nada parecido. Quando cá estou parece-me que é assim como vós dizeis, mas quando estou naquela cidade, afigura-se-me que vós todos não valeis nada e que tudo o que dizeis é vento.

É admirável como o génio do cronista captou ou criou este curto diálogo para revelar dois estados de espírito diferentes.

O conde, longe de Lisboa, com a rainha, o governo, o apoio militar castelhano, e com a sua mentalidade afeita aos privilégios, direitos e imunidades tradicionais não podia compreender nem aceitar as transformações anunciadas, e muito menos acreditar na possibilidade da alteração brusca e violenta de usos e costumes de gerações inteiras.

Para ele, a realidade era demasiado simples para não ser verdadeira. Morrera o rei, havia o comprometedor contrato de casamento de Salvaterra de Magos, Castela estava contra Portugal e Portugal dividido. Na sua maneira de ver, era inconcebível que a loucura de dois sapateiros e dois alfaiates, querendo tomar o Mestre por senhor, tivesse qualquer possibilidade de êxito.

As suas ideias ganhavam redobrado peso pela presença, em Alenquer, dos amedrontados líderes da "union". Parte da nobreza, que ainda permanecia em Lisboa, estava ali representada por Álvaro Gonçalves Camelo e os cidadãos lisboetas, pelo seu mais prestigiado dirigente, Álvaro Pais. O povo, que nascera para trabalhar, não podia fazer parte das suas preocupações. O melhor era, como aconselhava, cada qual pensar na segurança dos seus bens.

Pelo contrário, o escudeiro, que estivera em Lisboa e sentira o pulsar da grandeza do movimento revolucionário, contagiado pelo elã da força popular, acreditava no sucesso.

Ele, que podia cotejar as duas mentalidades diametralmente opostas e estabelecer a comparação, estava em condições de afirmar que nunca se tinha visto um movimento popular com tamanha pujança e persistência, daí que, quando estava em Alenquer, parecia que o conde tinha razão, mas quando se encontrava em Lisboa sentia que tudo aquilo que se dizia e se prognosticava, entre os partidários da rainha, não valia absolutamente nada.

Afinal, o que aconteceria em Lisboa?

Se existem períodos da História que podem marcar determinantemente o futuro de um país, o que decorre do envio da embaixada conciliatória de Lisboa a Alenquer foi um deles.

Na capital, mesmo os menos avisados deviam pressentir que se viviam momentos decisivos. Por um lado, insistentes informações garantiam que o rei de Castela se aproximava da fronteira portuguesa. Por outro, depois de tudo o que acontecera, da rainha só poderiam esperar uma vingança correspondente aos excessos cometidos.

Mesmo admitindo que a sua resposta pudesse ter anuência total ou parcial, ninguém estava em condições de garantir o seu cumprimento.

Se na capital o receio não era geral, porque nem toda a população dera cobertura ao assassinato do conde Andeiro, o Mestre de Avis, os nobres, seus apoiantes, os participantes no ataque à Sé e os que a tinham ofendido dificilmente acreditariam no seu perdão.

Desses aflitos tudo se esperava, por estarem em desespero de causa. Todavia, muitos deles tinham praticado esses actos em razão de um princípio sublime, o da defesa da independência nacional. Havia também outros que, estando ausentes, comungavam os mesmos ideais, pouco se importando com a própria vida desde que a independência de Portugal fosse salvaguardada.

Perante a hesitação reinante, é precisamente aquele estrato da população que menos tinha a perder, ou seja, o comum povo livre e não sujeito a alguns, no dizer do cronista, que andava alvoroçado, revoltado e furioso, sentindo-se traído com a proposta levada para Alenquer, protesta veementemente e dirige-se ao Mestre pedindo-lhe que mandasse cessar as negociações com a rainha e assumisse, de imediato, o cargo de Regedor e Defensor dos Reinos.

Convocado pelo Mestre, o povo, reunido com ele no mosteiro de São Domingos, depois de se prontificar a servi-lo com tudo o que tinha e até a morrer por ele, propõe que desempenhe o cargo de Regedor e Defensor dos Reinos de Portugal e do Algarve, e ele aceita.

Como nessa reunião, que deu lugar à eleição, não estavam presentes muitos cidadãos honrados, os mais ricos da cidade, os proprietários, os mercadores e principais decisores da administração urbana, são convocados no dia seguinte, à Câmara do Concelho, para ratificá-la.

Diante dos convocados, o Mestre transmite-lhes que no dia anterior, por decisão do povo miúdo, tinha aceitado e havia sido eleito Regedor e Defensor dos Reinos. Solicitava-lhes apenas a sua confirmação ou rejeição.

Apanhados de surpresa, cochicham uns com os outros, sem se atreverem a responder, não apenas porque estava em causa a defesa dos seus cabedais ou por terem dúvida em relação à vitória do movimento, mas porque se haviam empenhado na citada embaixada e também por não saberem, ao certo, quais as contrapartidas negociadas pelo Mestre, em troca da eleição feita no dia anterior, sob forte pressão popular.

Continuavam também expectantes e sem replicar por quererem actuar em função da resposta da rainha mas, naquela sala de autêntico juízo final, viam-se confrontados com um dilema gravíssimo: ou aderiam ao movimento revolucionário e ratificavam a eleição, assumindo todas as consequências conflituosas com o acordo estabelecido ou em vias de ser assinado em Alenquer, ou continuavam a persistir na indecisão, sujeitando-se às resoluções hostis da população que, perigosamente, os envolvia. Daí a indecisão.

É neste momento dramático que o tanoeiro Afonso Anes Penedo, farto pela demora, tornou a pôr a mão na espada e ameaçou, tendo sido apoiado e secundado pelo povo: "eu em esta cousa nom tenho mais avemtuirado que esta garganta; e quem isto nom quiser outorgar, logo ha mester que o pague pella sua, amte que daqui saya" (Fernão Lopes, Crónica delRei dom João I da boa memória, Parte Primeira, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1977, p. 48).

Perante o alvoroço popular, não tendo outra alternativa, os interpelados outorgarem, por escrito, tudo aquilo que na véspera tinha sido prometido.

Foi assim, sob forte coacção e ameaça de morte, que a eleição de D. João, Mestre de Avis, como Regedor e Defensor dos Reinos de Portugal e do

Algarve, foi ratificada pela elite citadina no plenário da Câmara do Concelho de Lisboa.

Terá o Mestre sido obrigado a pagar um preço elevado pela sua eleição?

Historiador

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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