Quem traiu Anne Frank e levou os nazis a subir as escadas do número 263 no canal Prinsengracht, em Amesterdão, naquele dia 4 de agosto de 1944, e irem direitinhos procurar os oito judeus escondidos no anexo atrás de uma biblioteca móvel? A cena, levada aos palcos e ao cinema, entrou no imaginário comum. E a pergunta foi a que sempre se fez sobre a jovem judia cujo diário, traduzido do holandês para mais de 60 línguas, se tornou um dos mais conhecidos relatos da perseguição aos judeus na II Guerra Mundial..Até agora, achava-se que os nazis tinham sido avisados por um traidor a dar-lhes conta da presença dos judeus no esconderijo. Mas nunca se conseguiu confirmar sequer que essa chamada tenha sido feita. Por isso, a Casa Anne Frank, o museu que funciona no local onde a jovem viveu, decidiu fazer uma investigação olhando para os acontecimentos de uma nova perspetiva: e se não tivesse havido nenhuma traição? Um dos materiais usados para o estudo foram as entradas do diário a partir de março de 1944. E estas revelam que no mesmo edifício onde se escondiam Anne e a família havia trabalhadores ilegais e viviam dois homens que fabricavam falsos cupões de racionamento.."B e D foram apanhados, por isso ficámos sem cupões...", escreve Anne na entrada de 14 de março de 1944. B refere-se a Martin Brouwer e D é Pieter Daatzelaar, vendedores que tinham uma empresa no 263 de Prinsengracht, o edifício onde Otto Frank, pai de Anne, tinha a sua e onde escondeu a família..[artigo:5514385].A investigação aos cupões e aos trabalhadores ilegais terão assim estado na origem da ida dos nazis ao 263 Prinsengracht. Segundo os relatórios da polícia a que os investigadores tiveram acesso, os agentes enviados ao local não costumavam sequer trabalhar na busca de judeus, estando antes envolvidos em casos de fraude com dinheiro ou joias..O suspeito de Otto.Não é por acaso que a tese da denúncia durou até agora. O próprio Otto Frank insistiu em procurar o traidor que acreditava ter revelado o seu esconderijo. O empresário, que serviu no exército alemão na I Guerra Mundial, foi o único da família a sobreviver ao Holocausto, tendo morrido em 1980, aos 91 anos. Casado com Edith Holländer e pai de Margot e de Anne, este judeu suíço nascido na Alemanha mudou-se com a família para a Holanda após a ascensão de Adolf Hitler ao poder. E em julho de 1942, numa Holanda ocupada pelos nazis, decidiu esconder a família num anexo atrás de uma biblioteca móvel no escritório da empresa..Aos Frank juntaram-se Hermann van Pels, a mulher e o filho, e mais tarde Fritz Pfeiffer. Confinados naquele espaço durante dois anos, quando foram apanhados, os nazis levaram-nos para o campo de transição de Westbork e daí para Auschwitz. Neste campo de concentração, Otto Frank perdeu contacto com a família, acabando por ser libertado pelos soviéticos a 27 de janeiro de 1945. De volta à Holanda descobriu que a mulher morrera à fome e Margot e Anne não resistiram a uma epidemia de tifo no campo de concentração de Bergen-Belsen. Edith tinha 44 anos, as raparigas tinham 19 e 15..Convencido de que alguém denunciara a presença da família no Anexo Secreto, como o esconderijo dos Frank ficou conhecido, nos anos que se seguiram à guerra Otto analisou as fotografias de vários suspeitos. E, em 1946, chegou à conclusão de que podia ter sido Willem van Maaren a fazer o telefonema. A trabalhar no armazém desde março de 1943, quando substituiu o homem que fabricara a biblioteca falsa que tapava a entrada do esconderijo. Mas nunca foram encontradas provas que confirmassem estas suspeitas..Com o passar dos anos, outras pessoas apontaram mais suspeitos. Melissa Müller, biógrafa de Anne Frank, admitiu o envolvimento de Lena Hartog, mulher de outro funcionário dos armazéns, na eventual traição. Já Carol Ann Lee, biógrafa de Otto Frank, apontou para o nacional socialista Tonny Ahlers. Mas a recente investigação da Casa Anne Frank não encontrou provas do envolvimento de nenhum deles..A própria chamada para a Sicherheitsdienst (SD), a agência secreta das SS, é questionada pela nova investigação. No relatório, a Casa Anne Frank recorda que em 1944 não só muitas linhas telefónicas tinham sido cortadas em Amesterdão como o número das SD não estava disponível na lista telefónica. A existir, a chamada teria portanto tido de ser feita por alguém pertencente a uma agência do governo..Outra questão que está agora a ser levantada pela primeira vez é o tempo que os nazis passaram no número 263 Prinsengracht. Ao todo, terão sido duas horas a percorrer os vários andares. Ao contrário do que nos mostraram os filmes, não se dirigiram imediatamente ao Anexo Secreto. Começaram por pedir para ver o conteúdo de caixotes e sacos, acabando por descobrir o que se escondia por detrás da falsa biblioteca provavelmente por acaso..No seu relatório, a Casa Anne Frank sublinha que nenhuma das suas descobertas prova que a tese do traidor estivesse errada ou que as novas teorias sejam mesmo verdadeiras. Mas espera "inspirar outros investigadores a perseguir novas pistas" para esclarecer de vez o que aconteceu naquela manhã, há mais de 74 anos.