Afinal, a América não estava pronta para eleger uma mulher

Apesar de ter recebido mais votos populares que Donald Trump, Hillary Clinton não quebrou o grande teto de vidro.
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Pouco depois da meia-noite de ontem em Los Angeles, as ruas estavam desertas. Os bares e restaurantes esvaziaram-se rapidamente assim que as projeções deram Donald Trump como 45.º presidente dos Estados Unidos. Sobravam pequenos grupos aqui e ali. Duas jovens mulheres choravam desconsoladamente à porta do The Parlor, na Melrose Avenue, que ainda tinha as televisões ligadas na CNN. Noutros locais ali perto, os donos desligaram os canais noticiosos. Puseram música. O ambiente era soturno e desesperado.

"Este é o momento mais embaraçoso a que já assisti. Espero que as pessoas em Portugal saibam que só porque ele foi eleito presidente não quer dizer que todos o apoiamos", sussurrava ao DN Michylle Peterson, de 28 anos, lívida com os resultados. Votou em Hillary Clinton, mas não acredita que ela tenha perdido por ser mulher - foi o seu histórico longo na vida pública, os escândalos de Bill Clinton. "Parece-me um sonho. Quero dizer, um pesadelo." Peterson oscilava entre a fúria e o desconsolo. "Esta não é a vontade do país", afirmou, apontando para o facto de Hillary Clinton ter vencido o voto popular, com quase 60 milhões de votos - pelo menos mais 160 mil que Donald Trump.

Madrugada dentro, quando os analistas políticos se revezavam para tentar explicar como é que as sondagens tinham errado tanto, irromperam protestos em várias cidades da Califórnia. Em Oakland e Berkeley, centenas de pessoas marcharam cantando "Not my President!" Também foram reportadas manifestações em Pittsburgh, Seattle e Portland, Oregon, onde os eleitores furiosos cantavam "No Trump! No KKK! No fascist USA!" Houve bandeiras norte-americanas incendiadas, punhos levantados, dedos do meio em riste.

Em Los Angeles, o sentimento era de desilusão e medo. A Califórnia deu os seus 55 votos do colégio eleitoral a Clinton, com 5,47 milhões de votos populares (61%), contra 2,9 milhões para Trump (33%, mais ou menos a mesma percentagem de eleitores registados como republicanos).

Joana Metrass, uma atriz portuguesa a residir em Hollywood, estava incrédula. "O estrago de neste momento se tornarem aceitáveis estas opiniões, nomeadamente contra as mulheres, ao ponto de poder tê-las e ser-se eleito presidente com um apoio de 59 milhões, significa cuspir no esforço de mulheres como a minha mãe [Célia Metrass] que lutaram por mudar mentalidades há 40 anos."

Jackie Poles Ran, uma gestora de produto de 47 anos que vive em Pasadena, sofreu um choque. "Afinal, não estávamos prontos para eleger uma mulher." Os juízes que Trump vai nomear para o Supremo são o que mais a preocupa, porque podem mudar muita coisa. "Acho que as pessoas se tornaram complacentes e não foram votar. Ou então é porque vivemos nesta bolha da Califórnia e não percebemos o que estava a acontecer no resto do país."

É um estado muito diverso, com uma maioria de residentes hispânicos (39%), 13% asiáticos e 5,8% afro-americanos. O que lhes irá acontecer com um presidente assumidamente racista?

"Não estou muito assustada. Estou aqui legalmente", disse ao DN Karen Sottomayor, uma chilena de 24 anos que serve às mesas enquanto persegue os seus sonhos artísticos. É uma latino-americana com um sotaque quase perfeito. Esperava que Hillary ganhasse, mas concluiu que as pessoas preferem manter-se na ignorância a informarem-se. "O Trump tem um bom bla bla bla, diz coisas simples que as pessoas entendem e ficam na cabeça. A Hillary tem um vocabulário diferente, é articulada." Sottomayor receia que os efeitos do presidente Trump sejam extensos, porque o Partido Republicano passa a ter todo o poder legislativo e executivo no país. E explica numa frase porque é que acha que a América não elegeu a primeira mulher presidente: "O marido dela. Tinha prós e contras. Apesar de ainda haver gente que gosta dele, são pessoas mais velhas. A história dele não ajudou." Duvida que seja construído o tal muro com o México. "Deportar milhões não é conveniente para este país, em termos económicos. As pessoas a quem eles chamam de ilegais enriquecem a América, porque contribuem sem poder exigir nada."

Os hispânicos foram um grande alvo de Trump na campanha, mas houve tanto ou mais baterias apontadas aos muçulmanos. Falámos com uma estudante turca, Tugpa Yurdagul, que emigrou para os Estados Unidos em busca de uma educação - e uma vida - melhores. "Provavelmente vou ser afetada. Se ele fizer o que prometeu, banir muçulmanos e impor restrições, vou-me embora. Estou a estudar Gestão na UCLA, mas não tenho de ficar." Só que Yurdagul, que tem uns olhos castanhos profundos e não usa hijab, queria ficar na América. Receia o que pode acontecer com os muçulmanos agora que Trump ganhou. "Não sou religiosa, mas isto é mau. Não podes julgar as pessoas pela fé que têm. Eu acredito no carácter das pessoas, não quero saber se são cristãos ou judeus." Apoiava Hilary e não tem explicação para a vitória do oponente. "Isto foi um jogo para ele. Um jogo que queria ganhar, como uma criança."

As palavras desta turca foram bem mais comedidas que as de Michelle Hooshivai, uma cardiologista de 32 anos. Os seus olhos brilhavam de raiva e emoção. "Elegemos um fascista", gritou, comparando estas eleições ao brexit: as pessoas estão chateadas com o governo e radicalizam-se. É uma miúda "da província, de Tennessee." Votou na Hillary. Conta-nos como conseguiu formar-se através de um programa universitário financiado pelo governo, graças a uma medida do ex-presidente Bill Clinton, e como isso mudou a sua vida - ganha mais de cem mil dólares por ano. "O meu medo é que vamos andar para trás e deixar de ser progressivos. Nós somos o Ocidente... e vamos voltar para a Idade Média." Porque é que Hillary perdeu? Hooshivai espeta o dedo e lembra que Barack Obama foi eleito duas vezes. "Não é racismo. É misoginia. Isto vai inspirar-me a levantar a voz, a ser mais ativista para defender os meus direitos como mulher", prometeu.

Enquanto ela falava, um casal bradava alto. Não encontrámos um único apoiante de Trump nas ruas. Muitos homens gritavam contra o machismo do país, como Alex Ricks, de 32 anos. "Não me vou levantar para ouvir o hino nacional. Não vou respeitar Donald Trump. Se a América é isto, então a América que se f**a."

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