O presidente do Afeganistão, Ashraf Ghani, tomou posse nesta segunda-feira para um novo mandato, mas, momentos depois, o seu rival e ex-primeiro-ministro Abdullah Abdullah prestou juramento também como chefe de Estado. O caos político surge após a assinatura de um acordo de paz entre os talibãs e os EUA, que prevê a retirada total das tropas norte-americanas no espaço de 14 meses, e põe em risco as conversações diretas que deviam começar nesta terça-feira entre o governo afegão e os insurgentes..Depois de dois adiamentos, as presidenciais afegãs realizaram-se a 28 de setembro, opondo os dois adversários que já tinham disputado as eleições de 2014. Há seis anos, Ghani e Abdullah reclamaram a vitória, com o segundo a denunciar a existência de fraude. Mas, com a mediação dos EUA, acabaram por chegar a acordo para a criação de um governo de união, com Ghani a assumir a presidência e Abdullah o cargo de diretor executivo, ou CEO, como numa empresa, que na realidade era o de um primeiro-ministro com poderes reforçados. Mas a relação entre ambos sempre foi tensa..Agora, a história repetiu-se. Logo em setembro, e ainda antes de serem conhecidos os resultados eleitorais provisórios, o primeiro-ministro deu uma conferência de imprensa em que anunciava ser o vencedor, alegando que nem era preciso segunda volta. Por causa das várias denúncias de irregularidades, os resultados só foram anunciados em fevereiro, tendo Ghani obtido 50,64% dos votos (cerca de 12 mil acima dos 50%) e Abdulah 39,52%..O ex-primeiro-ministro acusa o presidente de fazer pressão sobre a comissão eleitoral para acelerar a auditoria dos votos (e põe em causa 15% deles), de forma a poder começar o seu segundo mandato antes das negociações de paz com os talibãs. Uma primeira tentativa de Ghani tomar posse, no final do mês passado, foi suspensa pela pressão dos EUA, preocupados com a crise que tal desencadearia na véspera da assinatura do acordo de paz com os talibãs, no Qatar..Desta vez, as tentativas de mediação do enviado especial dos EUA, Zalmay Khalilzad, não deram em nada e tanto Ghani como Abdullah tomaram posse em cerimónias paralelas. O primeiro usava o tradicional traje afegão, com um turbante branco, e o segundo vestia um fato. Khalilzad, assim como outros representantes internacionais, estiveram na tomada de posse de Ghani, no Palácio Presidencial. A cerimónia de Abdullah ocorreu à mesma hora, noutra zona do mesmo edifício. As televisões passaram as cerimónias lado a lado..Ataque de rockets.Durante as cerimónias, ouviram-se pelo menos duas explosões perto do palácio - o Ministério do Interior confirmou depois terem sido disparados quatro rockets nas imediações do edifício, que não causaram vítimas mortais mas deixaram pelo menos um polícia ligeiramente ferido. O ataque foi reivindicado mais tarde pelo Estado Islâmico, que continua a ter presença no país apesar de já não ter a força que tinha entre 2016 e 2018, quando foi responsável por mais de 1200 mortes entre os civis, segundo dados das Nações Unidas..Algumas das pessoas que assistiam à tomada de posse de Ghani levantaram-se para fugir, quando as sirenes tocaram, mas o presidente insistiu em ficar no pódio. "Não tenho colete à prova de bala, só a minha camisa, vou ficar mesmo que tenha de sacrificar a minha cabeça", afirmou. Segundo o jornalista da AFP presente, as pessoas voltaram ao seu lugar e aplaudiram o gesto de Ghani.."Ninguém devia subestimar o nosso compromisso para com a democracia genuína e a nossa determinação em garantir o Estado de direito. O nosso histórico de abnegação e compromisso não deviam ter dado motivo a ninguém para nos tomarem como garantidos. A invalidação de todos os votos fraudulentos é a saída", escreveu Abdullah no Twitter, não sendo claro como se vai desenrolar a situação..Ghani, de 70 anos, promete para os próximos dias um novo governo, que incluirá membros de diferentes forças políticas. A dúvida é se Abdullah, de 59 anos, irá também nomear o seu próprio executivo e se estes tentam assumir os cargos pela força. Há umas semanas, o governador distrital de Dar-e-Suf, na província de Samangan, foi raptado pelos talibãs e Abdullah apressou-se a nomear um sucessor, ainda antes de se conhecer o destino do governador e afastando o interino nomeado pelo governo central. O escolhido tomou posse neste sábado, rodeado de homens armados..Os dois adversários ocuparam cargos no governo de Hamid Karzai, após a queda dos talibãs. Ghani, independente, foi ministro das Finanças entre 2002 e 2004, acabando por ser quarto nas presidenciais de 2009 (ganhas por Karzai). Já Abdullah, líder da Coligação Nacional do Afeganistão e amigo próximo do líder da Aliança do Norte, Ahmad Shah Massoud - que foi assassinado dois dias antes dos ataques do 11 de Setembro de 2001 pela Al-Qaeda para proteger o seus aliados talibãs -, foi chefe da diplomacia entre 2001 e 2005. Também já tinha ocupado um cargo semelhante na Aliança do Norte. Nas presidenciais de 2009 ficou em segundo lugar, atrás de Karzai..Negociações de paz.Os talibãs, que governaram o Afeganistão de 1996 até serem derrubados em 2001 pela invasão liderada pelos norte-americanos, assinaram um acordo com os EUA em 29 de fevereiro, em Doha, no Qatar, dias depois de acordarem uma trégua temporária..Este acordo, que começou a ser negociado em 2018, prevê um cessar-fogo do grupo insurgente, que se compromete a não permitir que o território afegão seja usado como rampa de lançamentos para ataques no estrangeiro, e a retirada das tropas norte-americanas no espaço de 14 meses. Uma promessa de campanha do presidente Donald Trump, que queria um ponto final na guerra de 18 anos (a mais longa em que os EUA estiveram envolvidos)..Esta segunda-feira, os militares norte-americanos começaram oficialmente a retirada, deixando duas bases afegãs: Lashkar Gah, a capital da província de Helmand, e outra em Herat..Mas depois da "redução de violência" na semana anterior ao acordo, o cessar-fogo não durou muito depois de este ser assinado: logo a 3 de março houve ataques contra 43 controlos governamentais só numa das províncias afegãs, Helmand, e trocas de fogo noutras regiões, com os talibãs a dizer que iriam retomar os ataques contra as forças locais, mas não contra as forças internacionais. E, no dia seguinte, depois de Trump falar ao telefone com o principal negociador talibã, Abdul Ghani Baradar, aviões norte-americanos bombardearam posições dos talibãs em apoio às tropas afegãs..O acordo assinado com os EUA inclui a abertura de negociações diretas com o governo afegão, cuja legitimidade os talibãs não reconhecem e que durante anos apelidaram de "marioneta" dos EUA, assim como a libertação de cinco mil prisioneiros talibãs em troca de até mil membros das forças afegãs. E aí está o problema, visto que a maioria dos prisioneiros talibãs estão nas mãos do governo afegão e Ghani defende que o tema das libertações deve fazer parte das negociações, não ser condição prévia a estas ocorrerem, como querem os insurgentes..O porta-voz dos talibãs, Suhail Shaheen, disse à Al-Jazeera que a crise política "não é um bom sinal para as perspetivas de paz no país". Uma das consequências mais diretas passa pelo adiar do início das negociações previstas para arrancar já nesta terça-feira, sendo que a divisão enfraquece a posição afegã diante dos talibãs.