Afeganistão. "Como diz sua alteza, não há soluções Nescafé"
Nasceu no Quénia, estudou em Inglaterra e emigrou para o Canadá. Nurjehan Mawani é desde 2013 a representante diplomática da Rede Aga Khan para o Desenvolvimento no Afeganistão. Em Lisboa para participar na celebração do jubileu do príncipe dos ismaelitas, Mawani explica os princípios pelos quais se rege a rede e diz acreditar no futuro do Afeganistão.
Quando aceitou ir trabalhar para o Afeganistão não tinha qualquer relação com o país?
Não. Mas houve um facto muito interessante, há uma ligação. Eu fui a responsável pelo sistema de imigração e refugiados no Canadá e nos anos 90 houve um fluxo muito grande de afegãos a pedir o estatuto de refugiados. Portanto o meu primeiro encontro com afegãos foi nesse trabalho. Nunca esperaria um dia acabar no Afeganistão...
Porque aceitou este projeto?
Vou voltar à minha infância em África. Sou um produto da escola Aga Khan. Na verdade, na altura, se não fossem as instituições fundadas por sua alteza, as escolas, hospitais, complexos desportivos, seriam insuficientes não só para a comunidade ismaelita mas para a comunidade no seu todo. O Quénia ainda estava sob domínio colonial e havia um desenvolvimento separado [em relação ao Reino Unido]. O que quero dar ênfase é que a qualidade dos serviços prestados permitiu-nos mudar de forma perfeita de uma pequena cidade, Mombaça, para os estabelecimentos escolares em Inglaterra, nos Estados Unidos e no Canadá. O objetivo é a qualidade e isso tem sido o fio condutor em tudo o que a rede de desenvolvimento Aga Khan faz. É a importância do acesso aos serviços, de construir instituições e de capacitar pessoas. Mas fazê-lo a um nível que seja sustentável e que esteja envolvido num conceito de excelência.
Li que não se sentia satisfeita em Londres por não conseguir desenvolver os seus conhecimentos profissionais.
Na época a Inglaterra era muito homogénea. Hoje é bastante diferente, mas na altura não havia oportunidades suficientes. Tínhamos de pertencer ao establishment. Era visivelmente de uma minoria, uma mulher, e isso não jogava a favor quando se tentava passar pelos obstáculos de uma carreira jurídica. Era uma advogada qualificada, mas tornei-me numa solicitadora. Era mais fácil, estava atrás de uma secretária.
Era mais discreto.
Sim. Depois fui visitar a família ao Canadá e senti um ambiente diferente, para mim e para a minha família. Foi uma boa decisão. O que me surpreende em Portugal, que eu tanto valorizo, bem como a rede, é a abertura. É a minha terceira visita a Portugal e o respeito pela pluralidade é impressionante. Os portugueses devem sentir muito orgulho por isso.
Mas vem do Canadá, de uma sociedade muito aberta.
Muito, com os seus altos e baixos, como muitos países. Como sua alteza muitas vezes diz, o pluralismo não é uma qualidade inata. Nascemos com ela, mas temos de aprendê-la. Acho que tem tudo a ver com liderança. Mas não chega. São necessárias instituições. E se olharmos para o contexto canadiano, tem instituições muito fortes que sustentam quer a democracia quer os seus valores.
Teve um papel importante na mudança dessas instituições.
Tive a felicidade de ter tido um papel no Canadá e quando fui convidada a ir para o Quirguistão, muitos colegas do governo perguntavam: Quirguistão? Quando souberam de onde veio o convite perceberam que devia haver um bom motivo. Foi uma experiência extraordinária, porque de certa forma foi uma start-up.
Foi dar início a esse projeto?
Tínhamos alguns programas da Fundação Aga Khan e havia uma escola, mas queríamos aumentar a presença com o estabelecimento da Universidade da Ásia Central.
Foi criado através de um tratado assinado pelas repúblicas do Quirguistão, Cazaquistão e Tajiquistão, em 2000, e que também tem programas no Afeganistão. Estive envolvida no processo de criação da universidade, que tem três campus. Durante esse período houve revoluções no Quirguistão, em 2005, em 2010, um conflito étnico...
Tempos difíceis.
Sim, mas o que é importante, o que aprendi no governo canadiano e mais ainda na rede, é manter o rumo. Enfrentamos os desafios. Podemos é ter de abrandar um pouco. No Afeganistão trabalhamos em áreas isoladas e com comunidades extremamente pobres, afetadas pelo conflito e vulneráveis a desastres naturais. Há quem atravesse duas linhas de fogo todos os dias para que existam serviços. Fazem um trabalho muito importante, de outra forma não existiriam serviços de saúde nem de educação. E o que acontece é que as pessoas começam a acreditar em nós. Muitas pessoas perguntam-me como é que se consegue trabalhar no Afeganistão. É igual lá como noutro lado: a comunidade aceitar-nos devido à confiança construída. É por isso que me sinto muito feliz e orgulhosa por fazer parte deste esforço, porque olha a longo prazo. Se há uma operação [militar] temos de fazer uma pausa.
Já tiveram problemas com os talibãs?
Há incidentes, em especial se estivermos em áreas controladas pelos talibãs. Mas continuamos a gerir hospitais, tratamos os habitantes, os militares e os talibãs. Ou os insurrectos, não gosto de dizer talibãs porque nem sempre se sabe quem são. Seja como for, da minha observação de cinco anos no Afeganistão, e a rede está lá há mais anos, é que é necessário tempo para construir confiança. Não há soluções rápidas. Como diz sua alteza, não há soluções Nescafé, há a tentação de construir e dizer que está tudo bem. Já vi hospitais, clínicas e escolas vazias que chegue porque não havia sustentabilidade, fosse de recursos humanos, fosse de recursos materiais. Digo isto com toda a modéstia, mas o que nos torna únicos é que temos uma abordagem de múltiplos inputs. Se queremos construir comunidades resilientes, intervenções desgarradas não vão chegar. Sabemos isto de 40 anos de trabalho de desenvolvimento na região. Só educação não chega, a saúde é universal, mas é preciso mais, é necessário o microcrédito, mas para isso tem de haver educação vocacional e também redução de riscos de desastre - a Ásia Central é bastante dada a vários riscos naturais. Sua alteza criou a Agência Aga Khan para o Habitat para lidar com as alterações climáticas e a redução de impactos de desastres.
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Quantas pessoas trabalham no Afeganistão?
São 6800 pessoas que trabalham diretamente. 95% destas pessoas são afegãos. Há um grande foco em envolver a comunidade local e em transmitir conhecimentos para garantirmos que as instituições fiquem em mãos sólidas e que permaneçam. O número de pessoas que trabalha de forma indireta é muito elevado.
As etnias também estão representadas?
Um dos desafios da atualidade é o facto de as pessoas não serem capazes de viver de forma harmoniosa, por não aceitarmos o outro, seja lá quem for. Se olharmos para a Fundação Aga Khan no Afeganistão estão lá 20 nacionalidades, é uma mini ONU, muito cosmopolita. E quanto aos afegãos, também é muito diverso. Há pastós, usbeques, tajiques... E também asseguramos que haja inclusão de género. Sem inclusão nem participação as pessoas sentem-se na periferia. Quando as pessoas se sentem marginalizadas leva a uma série de outros problemas.
A cultura é outra prioridade na ação da rede Aga Khan.
Esse trabalho desenvolve-se através do Fundo Aga Khan para a Cultura. No Afeganistão a reabilitação de locais históricos restabeleceu e reavivou o sentimento de dignidade de um património tão rico que tinha sido destruído ao longo de muitos anos. Se for ao Afeganistão tem de ver o Bagh-e Babur.
2015 foi o ano que o presidente do país descreveu como o ano da sobrevivência. Nesse ano um milhão de pessoas visitaram os jardins restaurados. No ano seguinte, 1,3 milhões de visitantes. As pessoas procuram espaços seguros mas também neste caso cultura tangível e intangível. Por outro lado, para iniciar um projeto cultural, sua alteza é muito clara: tem de se fazer um estudo de base do estado sócio-económico da população à volta e de como é que esse restauro cultural pode beneficiá-la. É de certa forma um trampolim para o desenvolvimento sócio-económico.
Como vê o papel da mulher na sociedade afegã? Nota progressos?
Penso que progressos consideráveis, isso é inquestionável se olharmos para o período dos talibãs. É fácil esquecermos a longa jornada que o país tem atravessado. Há expectativas, o que está correto, até porque a comunidade internacional tem sido de um grande apoio financeiro, mas por vezes as expectativas nem sempre compreendem o trauma pelo qual o país passou. É dos povos mais resilientes, tem dos mais fantásticos homens e mulheres. As mulheres estão a chegar ao seu lugar. Há cada vez mais mulheres no governo, no parlamento, na sociedade civil. Há a tendência de olhar para os países pela capital, mas não é assim. A maioria da população está fora, por isso tendemos a fazer mais trabalho fora da capital. Temos o hospital pediátrico em Cabul e programas culturais mas o resto do trabalho de desenvolvimento é fora. A nossa atenção está em dar força aos serviços regionais, aos locais remotos.
Não deve ser um sítio fácil para trabalhar.
Tenho de lhe dizer que quando fui para o Afeganistão em 2013 houve a transição de segurança e política. E posso dizer-lhe que nunca me senti excluída. Quando um dia sair do Afeganistão vai ser um dos momentos mais tristes porque fui incrivelmente bem acolhida pelos afegãos.
Falava das questões de segurança.
Claro, não o podemos negar. Mas tenho visto uma mudança desde 2013 e com o cessar-fogo todos estão a trabalhar para o mesmo fim.
Há esperança para o Afeganistão?
Sim, não vai ser de um momento para o outro, mas há que manter o rumo. A NATO mantém o seu compromisso, e já não limita a presença ao tempo mas às condições. Do lado do desenvolvimento houve a conferência de Bruxelas e agora irá realizar-se a de Genebra, que vai ter lugar em novembro. E o nosso compromisso é de longo prazo.