AFEGANISTÃO - O grande jogo que correu mal à URSS
Quando anunciou o envio de mais trinta mil tropas americanas para o Afeganistão, a 1 de Dezembro, Barack Obama terá, com certeza, pensado na expressão «cemitérios de impérios». É assim que aquele país a cavalo entre a Ásia Central e o Sul da Ásia se tornou conhecido ao longo dos séculos. Que o digam os soviéticos que, fez exactamente trinta anos no dia 24, lançaram a invasão que se saldaria em 1989 com uma derrota que se tornou sinónimo do fim da União Soviética.
Mas não foram os únicos a ser derrotados pelos senhores da guerra naquelas montanhas de terra castanha. Já Alexandre, o Grande, no século IV a.C., Genghis Khan, no século XIII, e os britânicos, no século XIX, tiveram oportunidade de se confrontar com a aparente invencibilidade dos afegãos e a sua resistência ao invasor.
Desde o século XIX que a Rússia, e depois a União Soviética, procurava impor a sua influência sobre o Afeganistão. O país foi usado como Estado-tampão entre os impérios russo e britânico durante aquilo que ficou conhecido como o «grande jogo». Nesta luta pelo domínio da Ásia Central, os britânicos receavam que o avanço das conquistas dos czares russos pusesse em causa a jóia da coroa do seu império: a Índia. Mas foi só em Dezembro de 1979 que os soviéticos, sob a liderança de Leonid Brejnev, conseguiram o pretexto de que precisavam para invadir o Afeganistão.
Para perceber o que aconteceu é preciso recuar a 1973, quando o antigo primeiro-ministro Ali Muhammad Daoud protagoniza um golpe contra o seu primo, o rei Mohammed Zahir Sha. Mas o seu regime centralizador e autoritário recolhe poucas simpatias, em que os movimentos comunistas como o Partido Democrático do Povo do Afeganistão (PDPA) foram ganhando força, apesar de o islão ser maioritário na população.
A morte de um dos seus membros e as ameaças de extermínio de todos os outros levou ao que ficou conhecido como khalq, uma revolta que pôs no poder, em Abril de 1978, uma duas facções do PDPA que se haviam criado pouco antes, a dirigida por Mohammad Taraki e apoiada pela União Soviética. O novo regime decidiu então fazer reformas e modernizar algumas das leis, sobretudo as que diziam respeito ao casamento e aos direitos das mulheres. A revolta dos mais religiosos contra esta visão laica do comunismo implementada por um grupo de militantes «inexperientes e utópicos», como são descritos no Dicionário Histórico e Político do Século XX neste país constituído na sua maioria por muçulmanos sunitas, não se fez esperar e rapidamente o exército afegão se viu confrontado com vários focos de revolta. Esta sociedade maioritariamente rural e conservadora não estava preparada para as reformas impostas à força e os camponeses foram os primeiros a mostrar o seu desagrado.
O Afeganistão, que desde o final da Segunda Guerra Mundial conseguira manter-se neutro, pendendo ora para o lado dos Estados Unidos ora para o lado da União Soviética nesses tempos de Guerra Fria, havia entretanto assinado um acordo que dava ao PDPA a possibilidade de pedir ajuda aos soviéticos. E em Dezembro de 1979, depois de a outra facção do partido comunista afegão ter tomado o poder, as tropas soviéticas – estima-se que cerca de cem mil – começaram a juntar-se na fronteira afegã, tendo entrado no país na noite de 24 para 25 de Dezembro.
E foi no Dia de Natal que os primeiros homens chegaram à capital, Cabul. Dois dias depois, elementos do KGB (os serviços secretos da URSS) e das forças especiais identificadas como GRU ocuparam a maioria dos edifícios governamentais da cidade, inclusive o palácio presidencial Tajbeg, onde o então líder Hafizullah Amin havia estabelecido o seu quartel-general. Acabaria morto. Não foi preciso esperar muito para ouvir a rádio Cabul anunciar que o Afeganistão fora «libertado» pelos soviéticos. O que estes não sabiam é que o conflito ainda nem tinha começado.
Enquanto os soviéticos ocupavam as maiores cidades e as principais estradas afegãs, os combatentes mujaedines optavam por uma estratégia de guerrilha. E um ano depois de terem entrado no país oitenta por cento destes continuavam a escapar ao controlo dos militares soviéticos. E nem as cinco grandes ofensivas lançadas por Moscovo entre 1980 e 1985 conseguiram inverter as coisas, apesar de os helicópteros soviéticos aterrorizarem quer os guerrilheiros quer os aldeãos que os protegiam.
A verdade é que os mujaedines sozinhos não teriam conseguido resistir ao poderio do exército soviético. Tal só foi possível graças ao apoio externo, entre outros o do dos Estados Unidos, que, ao contrário do que foi noticiado na altura, começou ainda antes da invasão. Em Julho de 1979, o presidente Jimmy Carter já havia dado a ordem à CIA para realizar operações de propaganda no Afeganistão contra o regime comunista e autorizara o financiamento da guerrilha por fundos americanos.
No seu livro de memórias From the Shadow, o então director da agência secreta americana e hoje secretário da Defesa de Barack Obama, Robert Gates confessa que Washington já estava a ajudar os rebeldes seis meses antes de o primeiro soldado soviético pisar o solo afegão. Numa entrevista dada anos depois ao Nouvel Observateur, o conselheiro de Carter Zbigniew Brzezinski admitiu: «Não obrigámos os soviéticos a intervir, mas aumentámos as probabilidades de que viessem a fazê-lo.»
A incapacidade dos soviéticos para quebrarem a resistência afegã resulta assim de uma série de factores. O primeiro é a forte mobilização popular em nome da jihad, ou guerra santa. O segundo é a própria geografia acidentada do país que ajudou a fazer dele o cemitério de impérios de que a História reza ao favorecer os guerrilheiros locais, que assim se especializaram em emboscadas e armadilhas. Mas nada teria sido possível sem a ajuda externa, encaminhada para o Afeganistão sobretudo através do Paquistão, então governado pelo general Zia Ul-Haq, que aceitava o dinheiro dos ocidentais em troca do uso do seu território.
Com a revolução islâmica que derrubou do poder no Irão o xá Reza Palhevi, grande aliado dos Estados Unidos, e o substituiu por um grupo de clérigos xiitas liderados pelo ayatollah Khomeini, ainda bem fresca na memória, Washington não podia dar-se ao luxo de perder o Afeganistão para os soviéticos. A irritação de Carter perante a «pior ameaça à paz mundial desde a Segunda Guerra Mundial» ficou patente logo em 1979 quando o presidente americano decretou um embargo aos produtos soviéticos, desde cereais a armas. Em 1980, os Estados Unidos lideraram o boicote aos Jogos Olímpicos de Moscovo, nos quais o Afeganistão, curiosamente, participou.
Nas cidades e campos afegãos, a resistência ia-se organizando sobretudo com base em partidos sediados em Peshawar, no Paquistão, para os sunitas, e no Irão para os xiitas. Mas a verdadeira liderança da guerra contra o invasor soviético estava nas mãos dos chefes mujaedines, que se tornariam senhores da guerra. Entres eles, alguns viriam a ter papéis de destaque no futuro do Afeganistão. É o caso de Ahmed Shah Massoud, à frente dos tajiques, no Nordeste, e de Gulbuddin Hekmatiar, líder dos pastunes, no Sul.
Em meados de 1980, os apoios chegavam aos mujaedines através de várias fontes. Além dos Estados Unidos, o Paquistão, a China, o Reino Unido e a Arábia Saudita contribuíram para agravar os enormes custos da guerra que Moscovo enfrentava. E, claro, o crescente descontentamento das famílias dos muitos jovens que perderam a vida no Afeganistão. Dos 620 mil militares e agentes secretos soviéticos que passaram pela guerra quase trinta mil morreram em combate. Do lado afegão, as baixas foram bem mais pesadas, com um milhão de pessoas mortas e cinco milhões que procuraram refúgio no Irão ou no Paquistão. Outros dois milhões foram deslocados dentro do seu próprio país.
Empenhados em envolver os países islâmicos neste conflito que viam como parte da Guerra Fria, os Estados Unidos não só convenceram a Árabia Saudita a alinhar no apoio aos mujaedines, como incentivaram o recrutamento dos chamados «voluntários árabes», combatentes estrangeiros que queriam participar na jihad contra os comunistas ateus. Entre eles estava um jovem saudita chamado Osama bin Laden, cujo grupo, forte do treino que recebera da CIA, se tornaria mais tarde na Al-Qaeda, a maior rede terrorista do mundo, responsável pelos atentados de 11 de Setembro de 2001 que mataram quase três mil pessoas nos Estados Unidos.
Apoiados no conhecimento que têm do terreno, os rebeldes apostaram nas operações de sabotagem. As mais comuns passavam pela destruição de linhas de abastecimento de electricidade, oleodutos e estações de rádio, explosões em edifícios governamentais, terminais de aeroporto, hotéis, cinemas e outros locais públicos.
Chegado ao poder em 1985, Mikhail Gorbachev não escondeu a sua impaciência com o arrastar da guerra no Afeganistão. E o novo líder soviético exigiu que fosse encontrada uma solução no prazo de um ano. As forças da URSS foram reforçadas mas, apesar das perdas sofridas no ano mais mortífero da guerra, os mujaedines continuaram a resistir. Em 1986, Gorbachev decidiu retirar as tropas do Afeganistão. Até porque o conflito estava a gerar fortes críticas internas e a reestruturação da economia da URSS exigia o apoio ocidental. Ao mesmo tempo, os novos mísseis stinger, fornecidos pelos americanos aos mujaedines, tinham acabado com o domínio dos céus afegão pelos helicópteros soviéticos.
O fim da guerra, concretizado com a assinatura dos Acordos de Genebra em Abril de 1989, marca não só o fim das ambições expansionistas de Moscovo como dita o princípio do fim da União Soviética, que se desmantelará em Dezembro de 1991.
Ao contrário das previsões, o regime comunista de Cabul, liderado por Muhammad Najibullah, iria manter-se no Afeganistão por mais três anos após o fim do conflito, fazendo frente aos mujaedines. Mas com o fim da URSS e a união entre os homens de Massoud e de Hekmatyar, Najibullah – o antigo chefe dos serviços secretos afegãos, agora presidente – seria derrubado. Apesar da criação de um novo governo, a vitória dos mujaedines veio apenas abrir um novo capítulo na guerra, com as várias facções a disputarem o poder entre si de uma forma tão violenta que Cabul fica quase totalmente destruída pelos combates.
Entretanto, muitos dos «voluntários árabes» que haviam combatido no Afeganistão regressaram, depois do fim do conflito, do seu treino de guerra aos seus países ricos com o desejo de se revoltarem contra os regimes autoritários que aí existiam. Tal aconteceu sobretudo na Argélia, Egipto e Arábia Saudita. Nesta última, Bin Laden não hesitou em se rebelar contra a monarquia que dera a fortuna ao seu pai.
Enquanto isso, o Afeganistão assistia ao aparecimento dos talibãs em 1994. Apoiados pelo Paquistão e com o aval de parte da população, em poucos anos os estudantes de Teologia conseguem dominar a maior parte do território. E em 1996 entram em Cabul sob a liderança do seu chefe espiritual, o mullah Omar, um antigo mujaedine que perdera um olho na luta contra os soviéticos. Dos chefes mujaedines só Ahmed Shah Massud conseguiu manter, graças à ajuda russa, iraniana e ocidental, uma bolsa de resistência no Nordeste do país. Donos e senhores de todas as grandes cidades, os talibãs impuseram a sua interpretação ultrafundamentalista da Sharia, a lei islâmica.
Mas a ausência de reconhecimento internacional e a imagem desastrosa do seu regime, acusado de dar abrigo a Bin Laden, o terrorista que organizou os atentados contra as embaixadas americanas no Quénia e Tanzânia, em 1998, e ordenara o ataque ao destroyer USS Cole dois anos depois, deixou o país – um dos mais pobres do mundo, apesar do cultivo da papoila do ópio – isolado.
A 9 de Setembro de 2001, Massoud morreu num estranho atentado enquanto dava uma entrevista a falsos jornalistas que depois veio a revelar-se serem membros da Al-Qaeda. O alcance deste acto – que afastou de vez o último grande adversário dos talibãs – só se perceberia dois dias depois quando os aviões pilotados por piratas do ar da Al-Qaeda se despenharam contra as Torres Gémeas, em Nova Iorque, e o Pentágono, em Washington. Em Outubro, os Estados Unidos, apoiados por uma larga coligação internacional, iniciam os bombardeamentos no Afeganistão que acabariam por levar ao fim do regime talibã mas não à captura de Bin Laden.
Mais de oito anos depois, não só o líder da Al-Qaeda continua em parte incerta como os talibãs voltaram a dominar grande parte do território afegão e a assustar a população com os seus atentados, assim como a matar soldados da coligação internacional, incluindo já dois portugueses. Resta saber se o reforço das tropas ordenado por Barack Obama será suficiente para os travar, ou se a América será mais um império derrotado nas montanhas e desfiladeiros afegãos.
Tradição de resistência
Na encruzilhada entre a Ásia Central e o Sul da Ásia, naquela que já foi conhecida como a Rota da Seda, o Afeganistão sempre foi um ponto estratégico na geopolítica mundial. Mas o seu terreno acidentado, montanhas íngremes e geladas e os desfiladeiros fizeram dele o cemitério de impérios de que tantos falam. Alexandre, o Grande, no século IV a.C., foi o primeiro guerreiro a sentir na pele a resistência afegã. Mas não foi o único. Genghis Khan e os outros imperadores mongóis não conseguiram melhor do que deixar lá os hazaras, um povo que ainda hoje se distingue pelos olhos rasgados e por ser o único afegão a seguir o xiismo, o que o tornou num alvo preferencial dos talibãs. Já no século XIX, foram os britânicos, envolvidos com a Rússia no «grande jogo» pelo domínio da Ásia Central, a precisar de duas guerras perdidas antes de conseguirem controlar o Afeganistão. Esta tradição de resistência ajudada pela geografia até deu nome às montanhas do Hindukush, «matador de hindus», devido ao triste destino dos invasores vindos da Índia nos seus desfiladeiros e montanhas geladas.