Aeroporto, senha C-139

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139. Era o número da vez para ser atendido na opção C - bagagens não-entregues, da Groundforce, Lisboa, quatro horas depois de aterrar. Ao lado das senhas e nos corredores, dezenas de pessoas acampadas no chão - não há onde sentar nas imediações do Lost and Found. O aeroporto vai acabar e já não vale a pena investir em cadeiras? Uma mulher chora. A sua vez não chega. Vai perder uma ligação, fala espanhol, inglês, vai e volta. Há também pais e filhos, gente desesperada. Há três pequenos First Café, com as mesmas coisas, para se sobreviver durante o sequestro - não se pode circular para as zonas de alimentação geral e sair não é opção. Uma banana custa 2,10 euros. Está caro ser saudável. E ficar sem malas.

É o calvário habitual nas bagagens de Lisboa. No meu caso, sendo Lisboa o hub da TAP para voos intercontinentais, a "ponte aérea" Porto-Lisboa é a origem do pesadelo. O voo das 10.00 horas desta sexta atrasou-se 2h e fez toda a gente perder voos em Lisboa, muitos dos quais remarcados para o dia seguinte, no meu caso via longa escala na Europa.

A TAP providenciou hotel e vouchers - tudo correto e atempadamente -, mas foram precisas quatro horas para colocarem no tapete as malas que saíram do Porto e não seguiram no voo de ligação. Os funcionários nesta zona do aeroporto são estoicos, mas não conseguem fazer mais. Expõem-se a centenas de pessoas e falam pelo telefone com o pessoal que está nos porões dos tapetes , a malta que carrega - mas que não consegue procurar agulhas no meio de tantos palheiros. É um desespero coletivo.

Obviamente a TAP não vai cobrir os prejuízos de um dia inteiro de trabalho por fazer no estrangeiro, mais hotéis e rent-a-car perdidos no destino. Ninguém consegue andar em lutas jurídicas face a tudo o que acontece. Qualquer pessoa do norte que marca um voo intercontinental já sabe que a melhor opção nunca - mas nunca - é Lisboa. "Lufthansa" é a palavra mágica. Já vai com três voos diários do Porto para Frankfurt e dois para Munique. É por isto que é difícil encontrar-se um único líder de opinião a norte do Mondego que defenda a companhia aérea portuguesa.

Torna-se, aliás, cada vez mais difícil de entender como pôde a TAP chegar a este nível tão baixo de confiança. O caos no arranque deste mês diz tudo sobre uma empresa que estará sempre limitada entre administrações com a faca do ministro ao pescoço e sindicatos que fazem gato-sapato de empresas públicas. As oito mil malas perdidas, fruto de dezenas de voos falhados e respetivas perdas de ligações, são um legado negro para a TAP e turismo português, por mais que haja excelentes pessoas na companhia e um sentido nacional na sua existência.

O problema de tudo isto é a Portela, dizem alguns. Infelizmente é mais fundo e mesmo que houvesse outro aeroporto, a TAP é muito cara para ser forte e ineficiente quando a sujeitam a tantos cortes. Vendê-la vai ser a única solução. E vendê-la é um eufemismo. É tipo Novo Banco. É mais um caso de uma marca tão orgulhosamente portuguesa, tal como o BES, que preservamos tanto tanto... que acabamos na ruína.

Além disso, mudar o hub da TAP para um aeroporto tipo Alcochete deixa-a completamente à mercê de uma concorrência em base igual e face à qual a companhia não consegue competir. Fá-la-á perder ainda mais valor quando se quer um embrulho bonito para a entregar à Lufthansa. A Portela é a boia de salvação da empresa se a Ryanair e as outras low-cost forem para... idealmente Beja, ou Monte Real... ou... Exato: Montijo. É o que já está (e estava) decidido.

Aliás, quanto a esta escaldante da nova localização, estamos no ponto ideal para quem decide: não há nem haverá consenso possível. Quando a Quercus - em nome das organizações ambientalistas que exigiram esta semana a avaliação estratégica do novo aeroporto - considera ambientalmente mais sustentável construir um aeroporto de raiz do que ir gerindo a atual infraestrutura, não há uma base mínima para ninguém se entender. Há algumas décadas anos que não se constrói de raiz nenhum grande aeroporto novo na Europa por causa dos impactos ambientais - à exceção de Berlim que derrapou 10 anos e milhões de milhões de euros. É esta a proposta da Quercus? É de uma total irrealidade no trade-off entre benefício/dívida pública/evolução da aviação.

Regresso ao talão 139 das bagagens não entregues. No hotel de Lisboa onde estão hospedadas dezenas de pessoas a quem a TAP tem de dar de jantar e dormida, as conversas são um comício anti-TAP. E foi na saída do táxi que encontrei um jovem casal, ali hospedado há dois dias, à espera de uma mala que continuava sem chegar, para continuar as férias. Como iam para o aeroporto, e para a mesma fila onde passei horas (entretanto salvo pela chegada das malas ao tapete 9), dei-lhes o meu ticket C-139 para que, quando lá chegassem, pudessem ser atendidos pela Groundforce sem passar mais quatro horas à espera. "Ontem foram sete horas", diziam. E lá foram, em direção à roleta-russa da cave da Portela. São isto as viagens loucas de 2022.

Jornalista

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