Adoniran
Há dias, a pretexto de duas crónicas minhas no Diário de Notícias, travou-se uma batalha na caixa de comentários sobre a língua que se falava no Brasil: português ou brasileiro? As crónicas aludidas falavam das visitas da Presidente Dilma e de Lula, e um dos apologistas do brasileiro enquanto língua lembrou Adoniran. Este seria um dos pais da língua que fala Lula da Silva, ensinada nos botecos e fábricas à volta de São Paulo. Exagerando um pouco, mas usando esse tal Adoniran, uma língua que diz isto: «Nóis num faz nada, porque dispois que nóis vai, dispois que nóis vorta...»Quem disse aquele sonora frase (em português ou brasileiro, não conta agora), foi um personagem da rádio de São Paulo, nas décadas de 1940 e 50, Charutinho. Emprestava-lhe a voz e o estilo Adoniran Barbosa, de nome artístico, nascido João Rubinato. Nascido, diga-se porque isso faz todo sentido, em 1910: ano em que nasceu também Noel Rosa, o sambista do Rio, e chegou ao Brasil, bebé, Carmen Miranda. Quer dizer, João Rubinato (1910-1982) estava talhado para o samba. Com o nome de Adoniran Barbosa foi cantor, poeta de samba, actor e inventou personagens inúmeros para a rádio. Homem de palavras, pois. Ele era filho de italianos imigrados, fugidos à fome do Vêneto, na Itália do Norte, tal como os pais de Carmen Miranda (Maria do Carmo Miranda da Cunha) fugiram da fome de Marco de Canaveses, no Norte de Portugal. Mais tarde, ela poria bananas e ananases na cabeça e deu rebolado à bunda. Ele, feio como Fred Astaire mas sem pernas dançarinas, com voz só «boa para acompanhar defunto», como logo o avisaram da primeira vez que se aproximou de um microfone, fez caminho dando cores às palavras.Um dia, Adoniran saiu a passear o cachorro e encontrou gente resignada na Rua Aurora, frente ao velho Hotel Albion. Os pobres que tinham ocupado o edifício decrépito acabavam de saber que o hotel - de facto, já maloca, como os paulistas chamavam às casas abandonadas - ia ser demolido. Adoniran fez um samba, Saudosa Maloca, sobre aquele «edifício arto», aquela «casa véia», aquele «palacete assombradado» - e «veio os homi cas ferramenta» porque o «dono mandô derrubá»... Os pobres que vieram para a rua, «tristeza que nói sentia/ Cada táuba que caía», não tiveram outro remédio: «Prá esquecê nóis cantemos assim:/Saudosa maloca, maloca querida...»Esse samba foi cantado pelo grupo Demónios da Garoa e proposto, em 1955, à editora discográfica Columbia, que do alto dos seus capitais de Wall Street recusou: «Isto é uma vergonha para a música brasileira.» Indignava-a os erros em português. Aceite por outra discográfica, o samba virou um clássico instantâneo. Como argumento de autoridade diz-se que muito anos depois, João Gilberto, o pai da bossa nova, com o seu violão e uma orquestra clássica por trás, o cantou. Mas eu tenho testemunho maior. Nos dez anos que se seguiram à canção ser lançada pelos Demónios da Garoa, ouvi, vezes sem conta, a milhares de quilómetros de onde Adoniran inventou aquelas palavras (mas na outra margem do rio Atlântico Sul), luandenses brancos, mestiços e negros a soletrar «dono mandô derrubá» e outros «palacete assombradado», para caírem num coro glorioso «Saudosa maloca, maloca querida...», apesar de nos terreiros dos muceques luandenses não se saber o que era uma maloca. Esse uso da minha língua, eu filho de pobres que foram para Angola, devo-a também ao filho de pobres italianos que foram para o Brasil. Não é português?Mas o que é ser mais português do que a mestiçagem que Adoniran faz dos termos e sotaques que se cruzavam nas suas ruas paulistas, do negro Charutinho («dispois nóis»), ao judeu («eu vende barrato»), passando pelo tão pernóstico lusitano («neste ambiente filarmónico e holocáustico»), que ele glosava nos seus personagens da rádio e cinema? Choca a cacofonia? Pois é com ela que se chega à pureza do samba lento Trem das Onze, letra de Adoniran. Ponham Gal Costa a cantá-lo e peçam meças a Bernardim Ribeiro.