Adeus tristeza

Publicado a
Atualizado a

Com "uma guitarra na mão", Fernando Tordo emigrou para o Brasil. Até aqui, descontada a louvável tolerância da TAP na bagagem de cabina, nada de especial: embora por regra mais jovens, muitos portugueses também emigram e, se atendermos à história, sempre emigraram. A circunstância de se tratar de um cantor e compositor popular não torna o gesto de Fernando Tordo diferente do gesto de tantos enfermeiros, biólogos e serralheiros, mesmo que estes raramente mereçam reportagens televisivas. É típico dos países pobres que as pessoas sem trabalho, ou com trabalho mal remunerado ou, como se afirmou no caso, com reformas pequeninas, procurem uma vida melhor. A culpa? É de todos e não é de ninguém, se me permitem o cliché. Não vale a pena apontar o dedo a quem votou no Governo da "austeridade". Nem a quem votou nos governos que forçaram a "austeridade". Por muito que nos custe, a "austeridade" é o nosso valor facial, o melhor que conseguimos se nos deixarem entregues a nós próprios e aos "fundos" e "tranches" que continuam a cair por aí. Sem os "fundos" e as "tranches", o valor facial será ainda menor. E, salvo um milagre, a "austeridade" maior.

Fujo do assunto. O interessante na partida de Fernando Tordo começa no pormenor de ele a ter anunciado no Facebook, em texto cheio de pretenso entusiasmo que as lamúrias em entrevistas posteriores (sim, teve direito a entrevistas) comprometeram. O interesse cresce quando o filho de Fernando Tordo publica no seu Facebook uma "carta-aberta" e terna ao seu pai, lamentando o ódio nas "caixas" de comentários online (ai, ai, que haveria imenso a dizer sobre o ódio nas "caixas" de comentários online). Por fim, a coisa atinge o sublime no momento em que Fernando Tordo responde ao filho - adivinhem - através de "carta-aberta" no Facebook.

Em suma, a internet é um refúgio de mal-intencionados, por isso vamos lá trocar intimidades na internet que as chamadas telefónicas estão pela hora da morte e os e-mails "fechados" não suscitam notícias de rodapé. À primeira vista, o maior problema da família Tordo não é a falta de dinheiro: é a falta de noção de privaci- dade, a falta de noção da sua insignificância. O problema da família Tordo é, afinal, o problema de incontáveis artistas caseiros, com e sem aspas: a lata. Dado que Fernando Tordo gosta de "cartas-abertas", cá segue outra.

Caro senhor (que não tenho o prazer de conhecer), emigrar não é um drama obrigatório. É uma decisão pessoal que, por definição, convém mantê-la assim ou limitá-la a círculos restritos. E se não é proibido espalhá-la aos ventos, é ridículo apresentarmo-nos ao público enquanto exemplo de sofrimento. Principalmente se o sofrimento é bastante relativo. É que também não é proibido que o público ache o exercício pretensioso e responda em conformidade. Além disso, já se sabe que quem abusa do acesso aos media arrisca-se a levar com os media em cima. Era escusado provocar a manchete do jornal i, que divulgou os 200 mil euros amealhados desde 2008 pela empresa que o senhor possui - só em concertos encomendados pelo Estado, com as autarquias à cabeça. Para quem se queixa dos "agentes públicos que desprezam as Artes (com maiúscula)", não está mal. Para quem insiste na relevância da Arte que produz, está péssimo: não haverá multidões ansiosas por encher auditórios de modo a assistir, sem patrocínios camarários, à enésima interpretação de Tourada? Pelos vistos, não. Por isso, o senhor rumou ao Brasil, onde decerto o aguardavam impacientes. E, ao que li, regressa em Abril. O senhor é um emigrante breve, mas o tempo que nos rouba já vai longo.

Terça-feira, 18 de Fevereiro

Regresso ao Porto

Por questões de logística, não costumo argumentar com blogues. Sucede que O Insurgente é um blogue especial, e foi n"O Insurgente que Mário Amorim Lopes comentou e sobretudo discordou de um texto que aqui publiquei na semana passada ("Perder na secretaria").

Resumindo muito, limitei-me a afirmar que muitos portuenses e nortenhos festejavam os recorrentes triunfos do FC Porto no futebol enquanto consagração da cidade e da região, e que isso acontecia ao mesmo tempo em que a cidade e a região se tornavam cada vez mais periféricas. No primeiro caso, sugeri, a culpa será do centralismo de Lisboa; no segundo, do centralismo do Porto. No fundo, só meio a brincar, pretendi lembrar que a representatividade da bola é de curto alcance, e que, a bem do peso do Porto e do Norte na política, na economia e no resto, e a bem do equilíbrio territorial, seria preferível deixar a preponderância futebolística a Benfica e Sporting e recuperar influência naquilo que conta. Para mim, que já atingi a idade adulta há demasiado tempo, é-me indiferente que o Benfica, o Porto, o Carcavelinhos ou os Passarinhos da Ribeira sejam campeões trinta anos seguidos. Não me é indiferente que a concentração dos centros de decisão chegue a tal ponto que leve o chairman da EDP, António Mexia, a designar o pedaço de Portugal a 200 ou 300 quilómetros de sua casa através da expressão "Lá, nas estradas no Norte". Para mim, e para alguns milhões de concidadãos, o Norte é "cá". Digo-o sem orgulho nem vergonha: apenas calhou assim, e assim não me alegram os sucessos dentro do campo como me alegrariam os sucessos fora dele. As vitórias no futebol não compensam as derrotas na vida. E para que não digam que não apresento soluções, eis uma: Benfica, Sporting, Belenenses e Atlético passavam a ganhar o campeonato sem interrupções e, por exemplo, os "fundos de convergência" eram distribuídos adequadamente pelo todo nacional.

Ilusão? Admito que sim. De facto, não sei de que maneira se pode inverter a tendência para que Lisboa absorva os recursos resultantes do nosso trabalho ou de esmolas do exterior. Sei que essa tarefa compete aos cidadãos e não às instituições públicas. Sei que, ao contrário do que afirma Mário Amorim Lopes, o respeito que Lisboa deve ao Porto e ao País não se pede, conquista-se. E sei que o combate ao centralismo não se faz ao pontapé.

Quinta-feira, 20 de Fevereiro

O milagre

Estava o Governo todo contentinho a celebrar o "milagre económico" quando o FMI, arrepiado de susto, correu a explicar que as promessas de aumento de salários e descida de impostos são, além de injustificadas, perigosas. É este o aborrecimento da tutela exterior: logo que o lirismo caseiro tenta livrar-se das amarras materiais, a realidade teima em puxar-nos para o chão. Pelo sonho é que vamos? Só se for para a bancarrota, e é melhor não contar com o dinheiro alheio no processo.

Mas a mais curiosa consequência do ralhete do FMI é a reacção da oposição, que andava alarmada com os indicadores de crescimento e de súbito desatou a citar repetidamente os promotores da famosa especulação internacional a fim de desvalorizar os indicadores e atacar os governantes. PS, PCP e Bloco concordam com o argumento de que os apertos vigentes ainda não transformaram Portugal numa nação próspera, embora discordem do FMI acerca da importância de apertos adicionais.

Trocando em miúdos, o PS exige o regresso aos "investimentos" de 2010, o PCP quer regressar às nacionalizações de 1975 e o Bloco, sendo pequenino, satisfaz-se com animação de rua, protestos garridos e graçolas alusivas à senhora Merkel. Quanto a PSD e CDS, que respiram sobretudo à custa dos delírios dos rivais, o objectivo é fingir que a respectiva acção determinará a solvência pátria num futuro vago. Em suma, há um Governo empenhado em proceder a uns remendos que disfarcem a nossa penúria e lhe permitam chegar inteiro a 2015, e há uma oposição que acha os remendos um crime e aspira ou a uma "solidariedade" europeia sem contrapartidas ou ao puro pandemónio. Pelo meio, infelizmente, há um país, cuja aflitiva situação não entra nas contas dos partidos, bastante mais preocupados em espalhar patranhas, sobreviver a eleições e consolar clientelas. No fundo, trata-se da farsa própria da política, com a agravante de esta estar a cargo de portugueses. Uma coisa é certa: apenas um milagre nos salvará.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt