Numa conferência que quer debater as alterações climáticas e os seus impactos na indústria do vinho, Roger Boulton traz um exemplo prático que, no fundo, é um apelo aos próprios produtores: lembrar-lhes que podem (e devem) começar neles os primeiros passos no combate ao aquecimento global que ameaça o futuro do setor..Mais do que alertar sobre os efeitos das alterações climáticas no vinho do futuro e apelar à ação de políticos e governantes, este professor do departamento de Viticultura e Enologia da Universidade da Califórnia, em Davis, veio ao Porto mostrar (e falar sobre) a adega do futuro, na Climate Change Leadership que decorre até quinta-feira no Edifício da Alfândega do Porto..Uma transformação que a própria indústria do vinho pode começar por fazer no sentido de reduzir a sua pegada ambiental e tornar-se mesmo "uma das maiores, se não mesmo a maior, indústrias de carbono zero no mundo", diz ao DN..A adega do futuro, que tem já um protótipo em funcionamento naquela universidade norte-americana, permite "aumentar a qualidade do vinho ao mesmo tempo que reduzir custos e melhorar a sustentabilidade com a gestão mais eficiente dos recursos naturais", sublinha este professor norte-americano, licenciado em Engenharia Química, que explicou ao DN como é então a adega ecológica do futuro..As adegas e as vinhas como as conhecemos terão de mudar por causa da mudança do clima? Sim, e com urgência, uma vez que a resposta política global é lenta e insuficiente para parar o aumento contínuo do CO2 na atmosfera. Na verdade, nesta altura, nós temos de reverter aquilo que já fizemos acontecer [em termos de clima] e isso vai requerer que a indústria do vinho se torne numa grande, talvez a maior, indústria de carbono zero no mundo. Vai levar uma ou duas décadas até que consigamos ver uma recuperação para os níveis daquilo que fomos conhecendo como condições climatéricas normais e típicas. A indústria do vinho deve liderar este movimento fazendo tudo o que lhe for possível, e não apenas aquilo a que é "obrigada" a fazer..Vocês implementaram um projeto bem-sucedido na Universidade da Califórnia, que pode ser uma projeção das adegas do futuro. Quais são as principais características? O que nós fizemos foi criar um exemplo, muito público e transparente, para todas as adegas do mundo. Fizemos algumas alterações na gestão da infra-estrutura e na utilização de recursos naturais e testámos o seu impacto ao nível local. Estas são ações que eliminam a energia externa (fora da rede elétrica) e a pegada de carbono daquela energia produtora, eliminam qualquer combustão de hidrocarbonetos para aquecer ar, água ou vapor, capturar a água da chuva em vez de usar uma fonte de água existente (fora da rede de água)..Também capturamos e sequestramos todo o CO2 da fermentação, uma vez que ele é cinco vezes mais concentrado do que qualquer gás de combustão. Se você quiser capturar CO2 de uma maneira mais eficiente, é por aqui que deve começar no setor do vinho. Então, juntamente com seus vinhedos, a indústria do vinho poderá tornar-se negativa em carbono, exatamente o que o mundo precisa..Estes projetos dependem de painéis fotovoltaicos e armazenamento de energia em baterias de lítio, captura e armazenamento de água da chuva no local... Filtramos a água da chuva e reaproveitamo-la como água estéril para ações de limpeza, só usamos sais de potássio e peróxido para a limpeza, e captamos as soluções de limpeza para nova refiltração, recuperando 90% da água e 90% dos seus sais para o próximo uso. Nós repetimos esse procedimento dez vezes, não só uma vez. Desta forma, utilizamos cerca de 1/5 da quantidade habitual de água..Também mudamos de químicos de sódio, cloro e fosfato para potássio e peróxido. O peróxido tem a vantagem de dividir-se em água e oxigénio, enquanto a maioria das plantas prefere o potássio ao sódio..Os nossos sólidos orgânicos (peles, caules e levedura da lavagem) são enviados para um digestor anaeróbio, para que não haja lagoas de tratamento de águas residuais e nenhuma libertação de CO2. Assim podemos operar sem os habituais recursos de energia e água, e não contribuir com nenhum CO2 significativo para a atmosfera..Espero que esta conferência estimule outras dez adegas vinícolas a adotarem algumas destas práticas, e cada uma delas fará com que dez outras o façam no próximo ano e logo haverá centenas e milhares de adegas de carbono zero..A viticultura também tem as suas responsabilidades nas alterações climáticas. Precisamos de um processo mais sustentável de produção de vinho? A vinha é, na verdade, um bom captor de carbono já. É na adega que é mais importante [e onde há mais potencial para isso] melhorar nas pegadas de carbono. A vinha captura CO2 diluído do ar (cerca de 400 ppm - parts per million), mas as adegas libertam quase 1,000,000 ppm de CO2 concentrado na fermentação. Por isso, sim, claro, precisamos de um processo mais sustentável, pois estamos a libertar a forma mais potente de CO2 no mundo..Como pode a tecnologia ser útil no combate aos efeitos das alterações climáticas na viticultura? Pode começar a sê-lo imediatamente. Existem várias tecnologias que podem já ser adotadas e a adega da UC Davis adota várias delas. A mudança das mentes céticas de políticos vai levar muitos anos. Como indústria, nós podemos começar a agir imediatamente e não devemos esperar pelos outros. Uma boa citação atribuída a Gandhi é: "Qualquer coisa que você faça será insignificante, mas é muito importante que você o faça pois ninguém o fará por você." Aplica-se bem a esta situação..A outra forma em que a tecnologia é importante é através da utilização dos social media e da informação produzida na web. A maioria das pessoas abaixo dos 40 anos consome informação através dessas fontes, não já pelos jornais, livros ou pelos seus pais. Este grupo quer ver mudanças imediatas, sem desculpas e atrasos, e não só espera como vai fazer força por uma nova ordem mundial em matérias ambientais, e no nível de CO2 em particular..Que tipo de recursos e técnicas podem ser usados para lidar com os imprevisíveis eventos climáticos extremos, que ocorrem mais frequentemente? No passado, nós realmente não precisávamos de saber muito sobre como as uvas crescem, amadurecem ou produzem componentes de sabor e aroma. Usávamos o conhecimento acumulado sobre o que funcionava e o que não funcionava. Esse conhecimento empírico não será muito útil para antecipar as mudanças ou adaptarmo-nos a condições em mudança. Precisamos de desenvolver modelos mais avançados de como as videiras crescem e de como é a sua interação com o ar e o solo em que elas existem..Esses modelos nos permitiriam entender os efeitos das prováveis mudanças nos padrões de temperatura ou precipitação e avaliar diferentes localizações que, num clima em mudança, podem fornecer a mesma química que estamos acostumados a ver nas uvas e nos vinhos atuais. Entre outras coisas, como avaliar a alteração de datas de colheitas, de práticas de fermentação, etc..Como definiria o vinho do futuro? O vinho do futuro serão já os vinhos da colheita de 2019... o futuro já está aqui, neste momento. Já observamos algumas alterações importantes em algumas regiões do mundo. Há vinhas em partes da Alemanha, por exemplo, que parecem estar a passar já por algumas mudanças significativas nas suas condições de crescimento e maturidade.