Açúcar e sisal

Leonor Guerra 1948-1962 Marco de Canaveses, Benguela
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Conheceu as fazendas do açúcar e do sisal, o cheiro da banana seca, o grito dos macacos e o choro das hienas. Para ter uma boa educação, Leonor Guerra foi afastada dos pais desde muito cedo. Hoje sabe que foram as alegrias imensas e as profundas tristezas vividas em África que moldaram o seu carácter.

«Quando era pequena, a minha mãe vestia-me o bibe branco, calçava-me os sapatos da mesma cor, e colocava-me o laçarote no cabelo. Arranjávamo-nos assim para ir visitar a mulher do médico ou do chefe de posto», conta Leonor Guerra. «Um dia, a minha mãe preparou-me para iniciar as visitas da tarde, e deixou-me com a vizinha do lado, a D. Rosa Almeida, para se ir vestir. Ora, na parte de trás da casa havia um tanque dos patos de que eu gostava muito. Quando a D. Rosa chegou ao pé de mim, eu já estava mergulhada dentro do tanque, completamente vestida e encharcada.» Uma travessura que Leonor recorda dos tempos que passou em Angola, na Fazenda Tentativa, no Alto Dande, uma região a nordeste de Luanda.

«Em 11 anos o meu pai mudou 12 vezes de fazenda. Era um homem muito brioso no que fazia e ia tapar buracos sempre que era necessário.» O pai trabalhava como técnico de contas, mas a alma estava rendida às artes. Pintava, tocava e fazia versos. Fora, aliás, essa faceta que quase deitara por terra a possibilidade de casar com a que viria a ser sua mulher, mas que também a conquistara. «O meu avô materno fora para o Dombe Grande, uma fazenda de açúcar em Angola, da família Sousa Lara.» Por ali faziam-se amizades facilmente, e aos 14 anos a sua mãe era amiga de uma rapariga que viria a ser sua cunhada. «Ela mandava muitas fotografias para o irmão, com imagens das festas e piqueniques, e ele encantou-se pela amiga da irmã. Fez-lhe versos e escreveu-lhe cartas. Ela achou graça, mas sabia que ele era mulherengo e não lhe deu grande confiança. Ele era um artista e, como lhe diziam as outras, os artistas não casam.» Ainda assim, como as famílias se conheciam, começaram a corresponder-se e a namorar por carta, e ela acabou por ir a Coimbra conhecê-lo, acompanhada do pai e da irmã responsável pelo namoro. «A minha mãe tinha 22 e ele 27. Acabaram mesmo por se casar na Igreja de Santa Clara-a-Nova. Foi assim que eu nasci em Coimbra.» Entretanto, o avô morreu e a situação financeira da família piorou. Leonor tinha um mês de idade quando fez a sua primeira viagem de barco. Iam tentar a sorte em África.

«O meu pai foi trabalhar para a fazenda de sisal da Companhia de Açúcar de Angola, que ficava no planalto de Huambo, perto do morro do Membassoco. Os serões eram passados a cantar e em representações teatrais e, de vez em quando, com projecções de filmes. Mas é de outra fazenda, a Tentativa, que Leonor guarda as primeiras memórias: «Tinha muitas palmeiras. Lembro-me de passear com os meus pais pelos palmares e de ouvir os macacos, a saltar de galho em galho, dando gritos. Ainda não teria 4 anos. Também tenho ideia de eles passearem muito de bicicleta até às sanzalas. Eu também ia, sentada no quadro da bicicleta do meu pai.» É desta altura a aventura no tanque dos patos.

Também na Fazenda do Dombe, onde estavam os avós maternos, se faziam as visitas às senhoras. «Uma das mulheres de um chefe de posto, que era muito elegante, também recebia. Mas era só quando lhe tocavam à porta que se ia vestir e arranjar o lanche com que presenteava as visitas.» Às vezes passavam-se duas horas entre o toque da campainha e a abertura da porta. Já todos conheciam o costume e sabiam que dali a um tempo se abriria a porta, só não sabiam quando. Das temporadas que passava com os avós, lembra-se das correrias e brincadeiras com os primos, do cheiro da banana a secar ao sol e do som dos animais, como o choro das hienas ou a passagem dos lobos muito perto de casa. À noite não havia luz, à excepção do período em que a fábrica de açúcar laborava: «Nessas alturas, íamos comer os torrões de açúcar quentes, acompanhados pelo barulho tremendo das máquinas.»

São boas as recordações de Leonor até à entrada na quarta classe. O pai, que sabia ser indulgente, era muito exigente no que dizia respeito à educação. Foi ele quem a ensinou a ler e a escrever, ainda não tinha 4 anos. Inicialmente, Leonor foi para o Colégio das Freiras Doroteias em Benguela: «Aqui começa o afastamento dos pais e é a fase dolorosa.» A experiência não correu bem. «Um dia destes encontrei a guia de marcha com que as freiras me enviaram de volta a casa. Dizia qualquer coisa como "Lá vai pessoa tal, com 8 anos de idade e trinta quilos de peso", como se fosse uma mercadoria. Devo ter sido entregue ao maquinista e os meus pais foram buscar-me. Enviaram-me depois para a escola da Chimboa, ao cuidado de um amigo do meu pai, cuja mulher era professora. Foi um médico que o meu pai conhecia que me levou até lá. Lembro-me dele, na viagem, a cantar "Lá em cima está o tiro-liro-liro...", enquanto eu via o morro de Membassoco a desaparecer e deixava as lágrimas correrem. Ainda hoje é difícil recordar.» Depois da quarta classe foi para o Liceu de Benguela, para a casa do professor Afonso Henriques: «Foi uma boa fase. Passeávamos muito e ia muitas vezes de manhã tomar banho à praia Morena, com a filha dele, que era da minha idade, antes de as aulas começaram, às 07h30.»

Em 1962 foi para Lisboa, na companhia da avó, fazer o sexto e o sétimo anos no Liceu Maria Amália, e mais tarde, entrou para a Faculdade em Biologia. Hesitou em Medicina mas, para desgosto do pai, foi o coração que falou mais alto. «Já namorava com o meu marido, Manuel Guerra, e na eventualidade de ele ser mobilizado escolhi a opção que achei que me daria mais facilmente trabalho.»

A terras de Angola foi apenas em 1972 para ver a família e apresentar o primeiro filho. E só em 1975 é que voltou a estar próxima dos pais. «Não foi fácil aceitar o afastamento. Mas tudo isto foi muito importante para a vida futura, porque me deu muita "estaleca" para o resto das coisas. Medos, não tenho. Nem das trovoadas, nem dos animais, nem das situações difíceis da vida.»

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