"Aconteceu-me várias vezes ter de interromper um julgamento para amamentar"
"O meu segundo filho resolveu nascer 15 dias antes do previsto. Fiz a cesariana num sábado e como o meu cliente havia sido preso preventivamente fui para casa e logo na quarta-feira comecei a escrever o recurso por o processo ser urgente."
Maria Manuel Candal é advogada por conta própria em Aveiro. Tem 47 anos e três filhos - com 18, 13 e sete anos. Regressou ao trabalho uma semana após o nascimento dos mais velhos. Só parou mais algum tempo depois do nascimento do último, porque partiu uma costela durante o parto. "A lei antes de 2009 não fazia qualquer previsão de pausa por parentalidade. Desde então permite adiamento de diligências por esse motivo - se esta tiver lugar no primeiro mês após o nascimento, o adiamento não pode ser de menos de dois meses. Mas em penal, em processos urgentes, quando o arguido está preso preventivamente ou em prisão domiciliária, não há possibilidade de adiamento. Ou vamos nós ao tribunal ou arranjamos alguém que nos substitua. Tenho uma colega que entrou em trabalho de parto e levou o computador para o hospital porque tinha um prazo de um recurso a terminar. Acabou o recurso no meio das contrações." Ri: "Não podemos ter acidentes, ficar doentes ou ter um filho doente. Uma vez estava em tribunal e a empregada ligou a dizer que o Manuel [o mais novo] tinha caído nas escadas e rachado o queixo. Felizmente a magistrada que presidia à diligência percebeu a minha aflição e arranjou forma de adiar aquilo."
Igualmente dependente da boa vontade dos magistrados, por não estar prevista na lei, é a dispensa para amamentação: "Aconteceu-me várias vezes ter de interromper um julgamento para amamentar. Os juízes ficavam muito admirados, perguntavam quanto tempo ia demorar. Um dia tinha uma diligência em Águeda às 9.30, fiz as contas e achei que dava para ir de Aveiro a Águeda, fazer a diligência e voltar a horas de dar de mamar. Mas ao meio dia aquilo ainda não tinha começado. Fui ao gabinete da juíza dizer-lhe que me ia embora porque tinha de ir a casa dar de mamar ao bebé e ela ficou muito surpreendida, disse: "Mas isso não esta previsto na lei". Respondi: "Faça como entender, eu vou." E ela lá decidiu escrever uma justificação qualquer na ata. Não havendo legislação, tudo depende do bom senso e da sensatez do magistrado que nos calha na rifa." Daí que em regra, quando o julgamento era fora de Aveiro, levasse o bebé consigo para o tribunal. "Metia-o no carro com a empregada e ela andava a passear com o miúdo e depois eu saía para lhe dar de mamar."
Trabalhando sozinha, Maria Manuel Candal não imagina nenhuma forma de poder parar durante o prazo mínimo obrigatório (seis semanas) que a lei prevê para as mulheres que dão à luz. "Ainda não consegui descortinar uma forma de conciliar o exercício dos direitos de parentalidade com as obrigações da profissão. Só numa grande sociedade de advogados é que me parece possível que se meta licença. No meu caso, é impossível. Os clientes não esperam, os prazos correm. Não posso ficar meses em casa, não me faz sentido. Até porque posso substabelecer num colega [passar os casos a outra pessoa], mas teria de lhe pagar."
Casada com um colega que também trabalha por conta própria, a causídica considera que no seu caso "há quase uma inversão dos papéis tradicionais. A advocacia que ele faz permite-lhe trabalhar muito em casa, e acompanhar mais os miúdos."
Cultura machista
Agora também a trabalhar por conta própria, Nuno Gonçalo Poças, 32 anos, estava integrado num grande escritório quando a sua filha nasceu, há um ano. "Quando me informei, antes do parto, disseram-me que as mulheres tinham direito a três meses de licença paga mas os homens só tinham dois dias, e em geral nem isso tiravam. Fui aos Recursos Humanos insistir nos meus direitos e acabaram por me dizer que podia tirar sete dias. Tirei-os e juntei uns dias de férias." Suspira. "Esta profissão está regulada como em 1960, quando havia 1600 e tal advogados e eram quase todos homens. E a cultura dos homens na profissão continua a ser que eles servem para ganhar dinheiro e as mulheres para tomar conta dos filhos e de tudo o que lhes diz respeito. Não há a ideia de que dar a papa e deitar os filhos também é função dos pais."
[citacao:"Fui ao gabinete da juíza dizer-lhe que tinha de ir a casa dar de mamar ao bebé e ela ficou muito surpreendida, disse: "Mas isso não esta previsto na lei""]
Apesar de, estando a trabalhar para uma sociedade de advogados, Nuno ter obrigações típicas de trabalho dependente, com hierarquia, horários, tarefas e objetivos atribuídos, passava recibos verdes como um profissional liberal. É assim na generalidade dos escritórios de advogados: "Somos um falso recibo verde." Como tal, e porque os advogados estão obrigados a descontar para a Caixa de Previdência de Advogados e Solicitadores (CPAS), nem as normas do Código de Trabalho nem as da Segurança Social (que desde 2009 prevê para os profissionais liberais/recibos verdes o gozo de licença de parentalidade paga) se aplicam. O que está previsto é o pagamento, a mães e pais, de um subsídio pelo nascimento, correspondente a um ordenado mínimo, e a entrega, a título de "benefício de maternidade", de um valor equivalente a 10 comparticipações mensais da advogada para a CPAS (a comparticipação depende do tempo de inscrição do advogado na Ordem), até um máximo de 3480 euros. Com uma particularidade: o pai ou mãe recente não fica eximido de pagar a contribuição mensal à CPAS mesmo que esteja de licença parental, ou seja, sem receber.
Por outro lado, se algumas das grandes empresas, de acordo com uma investigação recente do Eco, concedem licenças pagas às advogadas que têm filhos, variando entre três e quatro meses de duração (em algumas o quinto mês é pago a 80%), no que respeita aos advogados a situação é muito mais restritiva. Na Morais Galvão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados só se permitem dez dias de licença paga; outras, como a Vieira de Almeida, "dão" o mínimo - os 15 dias úteis considerados obrigatórios pelo Código de Trabalho --, sem qualquer menção à possibilidade de os pais partilharem a licença parental com a mãe. E em caso de adoção - a qual confere os mesmos direitos que a parentalidade biológica -, por um advogado ou um casal de advogados homens, ou no de uma advogada integrada num casal do mesmo sexo em que seja a parceira a dar à luz, não parece haver previsão.
Aliás esta omissão de situações há muito consagradas na lei (a adoção individual existe desde 1977; a adoção por casais do mesmo sexo há dois anos) e a indiferença face ao que está estabelecido legalmente em termos de partilha de responsabilidades parentais entre mulheres e homens encontra-se na atuação da própria Ordem dos Advogados. Esta, desde janeiro, isenta de pagamento de duas quotas mensais as advogadas que "sejam mães"; para os pais nada está previsto. E na proposta de estatuto para advogados que exercem em sociedades, apresentada em março ao ministério da Justiça, estabelece-se, em relação a faltas e licenças, que estes devem ter direito, "sem qualquer redução da remuneração acordada, a 120 dias em situação de maternidade e 30 dias em caso de paternidade."
"É uma violação da lei"
O bastonário, Guilherme Oliveira, apesar de afirmar "a imensa sensibilidade para o assunto devido ao problema da natalidade, que implica a necessidade de políticas de discriminação positiva", assume o tratamento não paritário no que respeita ao desconto de quotas: "Neste momento temos uma situação de desigualdade." Mas assegura que "se houver um requerimento de um advogado numa situação especial com certeza que será despachado." Ainda assim, e anunciando que o objetivo da Ordem é chegar aos seis meses de quotas grátis, passando para quatro já em 2019, não se compromete com o alargamento da benesse aos pais. "Quisemos fazer uma ação que fosse entendida positivamente, simbolizar a importância de ser mãe e pai. Em 2019 vamos fazer uma proposta ajustada do ponto de vista constitucional; desde que tenhamos capacidade financeira, alargaremos aos pais."
[citacao:"A diferenciação que a OA está a efetuar entre maternidade e paternidade é uma violação das leis portuguesas e das recomendações da Comissão Europeia."]
Numa classe por definição conhecedora das leis, não terá havido grandes protestos pela manifesta desigualdade de tratamento. "Vi alguns comentários nas redes sociais, mas essa eliminação das quotas é um desconto tão irrisório que a não reação se calhar é o mais adequado", diz José Miguel Marques, advogado viseense que tem protagonizado desde 2014 reivindicações de alteração ao regime da CPAS para que esta deixe de ser só "uma caixa de reformas" e passe a assegurar subsídios de doença e licenças de parentalidade. "60% dos advogados são mulheres e obviamente devem ter direito a licença de parentalidade e dispensa para amamentação. Mas a diferenciação que a OA está a efetuar, entre maternidade e paternidade, mulheres e homens, é uma violação das leis portuguesas e das recomendações da Comissão Europeia." Esclarecendo que a proposta entregue pela OA à ministra da Justiça não foi discutida pela classe - "Não fomos ouvidos previamente" - admite que os advogados são pouco reivindicativos. "Se calhar é um defeito da profissão. Durante anos ninguém se questionou sobre o porquê de uma caixa privada não prever nada em termos assistencialistas."
A questão dos direitos parentais dos advogados e dos aspirantes a advogados, em compensação, tem sido periodicamente trazida a público. No final de 2017, a associação feminista Capazes endereçou uma carta aberta à Ordem na qual refere a inexistência de qualquer previsão de suspensão e prorrogação do estágio em caso de maternidade ou paternidade. "Qualquer lei, regulamento ou ato administrativo que obrigue uma mulher a manter uma função - contra a sua vontade e o seu pedido - seja essa função pública ou privada, laboral ou no âmbito de um estágio profissional, no período imediatamente a seguir ao parto, implica uma violação do direito constitucional à família e à proteção da família", sublinha a associação, para a qual a omissão é uma violação de preceitos constitucionais. E, lembrando as obrigações legais da OA no sentido de defender "direitos, liberdades e garantias dos cidadãos", propõe uma nova versão do regulamento do estágio. Nesta os estagiários têm direito a suspensão, obrigatoriamente deferida, no mínimo de um mês e máximo de quatro meses, qualquer que seja a fase do estágio, "sempre que se verifiquem os pressupostos dos quais depende, nos termos do Código de Trabalho, a concessão de licença de parentalidade".
"Percebi que tinha de sair da firma"
De acordo com advogada Inês Ferreira Leite, da Capazes, a Ordem não reagiu à carta. Assegurando não se lembrar da missiva, o bastonário rejeita a ideia: "As estagiárias ainda não são advogadas, não se inserem na proposta de estatuto que fizemos. E não faria sentido que houvesse uma suspensão por força do que quer que seja." Uma vez que o estágio é pago, e não é barato, tal implica que uma estagiária que tenha um filho nos 18 meses que ele dura terá de pagar de novo, voltar a frequentar as mesmas aulas e fazer os mesmos testes. "A Ordem trata a maternidade como se fosse uma vontade que a pessoa tem de fazer uma viagem", comenta Inês Ferreira Leite. "Para quem tem pouco dinheiro, ter de pagar outra vez e de perder todo aquele tempo de novo pode ser impraticável."
Teresa, que prefere não ser identificada, teve essa experiência. "Engravidei a meio do estágio, quando ainda estava na fase teórica, que implica ir a aulas. Estávamos em 2003 e fui à Ordem dizer que queria suspender e não podia ser prejudicada por estar grávida. Disseram-me que não podiam fazer nada: não havia previsão para a situação porque nunca tinha havido uma estagiária grávida." Teresa não acreditou mas acabou por desistir. "Rebelei-me. E percebi que nos escritórios havia o mesmo espírito: houve uma advogada que na altura me disse estar muito contente porque lhe davam um mês de licença e a deixavam juntar as férias para ter dois meses."
[citacao:"Esta profissão está regulada como em 1960, quando os advogados eram quase todos homens. E a cultura dos homens na profissão continua a ser que eles servem para ganhar dinheiro e elas para tomar conta dos filhos."]
Por outro lado, atesta Nuno Gonçalo Poças, mesmo em escritórios que "dão" licenças mais longas às advogadas o resultado pode ser discriminatório: "Tinha uma colega que meteu a licença mas esteve a trabalhar na mesma, de casa, e quando distribuíram os prémios no final do ano descontaram-lhe o proporcional aos meses em que supostamente não tinha trabalhado." Depois, comenta Inês Ferreira Leite, admiram-se que 80 a 90% dos candidatos à magistratura sejam mulheres. Porque na magistratura têm contrato de trabalho e sabem que na advocacia serão discriminadas mesmo que não tenham filhos, pela possibilidade de os virem a ter." E, vinca, "mesmo em processo penal se uma juíza tiver um bebé o processo pára, não me digam que não. Enquanto que se for a advogada tem de pedir a alguém para a substituir e justificar a falta."
Autor de um artigo, publicado em fevereiro no Observador, sobre a proletarização da profissão, Nuno Gonçalo Poças defende que os advogados que trabalham em empresas de advocacia e portanto não são verdadeiros profissionais liberais "devem ser equiparados ao regime normal de trabalhador dependente". O que implicará que os empregadores paguem uma parte das contribuições para a CPAS ou que estes trabalhadores sejam integrados na Segurança Social (opção que José Miguel Marques defende). Como as coisas estão, ser pai mantendo-se na firma parecia-lhe impossível; saiu e trabalha agora como verdadeiro profissional liberal. "Estando no escritório e querendo ver a minha filha antes de ela ir dormir tinha de pedir licença para sair às sete. Percebi que tinha de sair dali. É uma questão de respeito pela pessoa que temos ao lado - que não faz sentido nenhum sobrecarregar com as tarefas todas relacionadas com as crianças - e pelos miúdos. Não quero ser um desconhecido para os meus filhos."