"Acho que a música nacional já esteve mais interessante"

O pop "desarrumado" de Beato apresenta-se em Lisboa esta quinta.-feira no Auditório Carlos Paredes, em Benfica, Lisboa. Em conversa com o DN, o músico explica esta etapa na sua carreira com o novo trabalho <em>Bonança</em>.
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Antes de outras perguntas: porquê o nome Beato e a necessidade de um alter ego?
Beato, para lá da associação inevitável a uma pessoa da Igreja, vem do latim beatus e significa bem-aventurado, uma pessoa feliz. É nesse significado que pretendo estar. Mas antes disso há o percurso que me trouxe à palavra que foi o facto de me ter instalado no Beato, em Lisboa, o que representou também um momento muito importante na minha vida e coincidiu com o assumir da minha carreira a solo. Isso fez-me pesquisar sobre o seu significado. Os dois motivos pareciam estar relacionados e fizeram sentido juntos, quase como um acaso que estava a pedir para existir, para marcar o meu percurso. Enquanto músico e compositor, sempre tive apetite para explorar dentro da pop e isso reflete-se nas bandas que fui cofundador de bandas como os Pinto Ferreira e os Ultraleve. Percebo agora que foi todo um percurso necessário para chegar aqui ao "Beato" que é como chegar à casa física onde estabeleço o meu porto de abrigo e que do ponto de vista artístico tem também esse significado: o de chegar a casa, à minha zona de conforto criativa, onde me revelo, sem filtros, sem constrangimentos.
O alter ego vem dessa necessidade de fechar um ciclo, um percurso onde tive tempo para criar música numa relação mais intensa com outras colaborações. Apesar de acompanhado com outros músicos, este processo foi mais solitário, mais focado naquilo que eu esperava e gostava de ouvir no fim. Na verdade, leva-me a questionar se o Beato é um alter ego, ou se o "Bruno Vasconcelos" foi o alter ego este tempo todo. Beato não é uma personagem criada. É real e será a casa que irei habitar daqui para a frente.

Como se pode definir a música do projeto Beato? E que tipo de mensagem quer passar?
Neste disco deixei à solta as minhas influências, a música que está cravada no meu ADN e que andava a ouvir durante a produção do disco. Sinto que passei estes anos todos à procura da minha voz como intérprete e do meu género musical, se é que se pode chamar assim. Não sei se cheguei a encontrar. Definir a minha música é um grande desafio porque eu ouço as músicas e sei o que fiz e porque o fiz, mas não faço ideia se quem for ouvir vai encontrar essas referências e influências. Provavelmente vai encontrar outras nas quais eu nem tinha pensado. Num grande chapéu, diria que é Pop, mas não é tão "arrumado" como se espera que a pop soe. A definição da música e da mensagem que passa depende muito do recetor e essa relação é mais interessante. Deixar as pontas soltas e cada um que as coza como quiser.

O que é este álbum Bonança?. Tem a ver com o pós-tempestade depois de uma pandemia?
Este disco estava programado muito antes de imaginarmos o que aí vinha. "Bonança" é uma coleção de músicas que já atravessaram outras vidas, mas que de alguma forma me foram acompanhando e eu a elas. Como nunca tinham sido editadas, esta era a forma de honrar esse percurso que fizemos juntos. O nome Bonança para o disco, veio da sensação que ficou quando concluído. Apesar de um processo de composição, gravação muito harmonioso e tranquilo, a última fase foi bastante esgotante. A última fase é sempre esgotante. Quando acabou, ficou um silêncio e uma sensação de paz, primeiro porque havia mesmo silêncio, sem música para ouvir, ou acertos a fazer e depois porque a sensação era mesmo a de ter sobrevivido a esta viagem. E a sobreviver refiro-me a chegar ao fim e encontrar neste disco todo o sentido de quando era só uma ideia. Fiquei tranquilo com o resultado. A decisão de fazer este disco trazia consigo alguns compromissos pois sabia que ia ter fases muito solitárias que acabaram amplificadas pelas medidas de isolamento e distanciamento exigidas durante a pandemia.

Como vai ser a promoção deste novo álbum?
O próximo grande momento da promoção será o concerto de apresentação no dia 20 de outubro [esta quinta-feira] no Auditório Carlos Paredes em Benfica. O resto da promoção do disco será um processo que vai acontecendo ao seu ritmo, sem grandes ansiedades nem expectativas. O contexto não é fácil e é bom ter sempre os pés bem assentes na terra. Mas gostava que houvesse muita estrada, muito contacto e partilha com as pessoas. A melhor parte de ter um disco lançado é poder desfrutar da (des)carga energética que as músicas ganham ao vivo. Ganham um pulso que os discos raramente conseguem transmitir. Gostava ainda de fazer um ao vivo com a música Nem te vi com a Joana Barra Vaz. Essa música merece um vídeo ao vivo. Isto é o início do percurso e por isso, é um caminho que quero fazer aproveitando a paisagem. Sem pressa.

É uma boa altura para se ser músico em Portugal?
Acho que a música nacional já esteve mais interessante. Há música boa, artistas que admiro e que se têm reinventado de uma forma incrível. Mas há uns anos atrás havia muita quantidade e qualidade, mas acima de tudo, diversidade. Eu gosto de pop e desde há uns tempos para cá que sinto que existe uma normalização na sonoridade e na estética. Como nos supermercados, a fruta para estar na prateleira, tem que obedecer a parâmetros e parece tudo igual. Ultimamente é isso que sinto, especialmente na pop: que está tudo demasiado formatado. A diversidade sónica é enriquecedora e torna-nos criaturas mais complexas e isso é saudável.

Citaçãocitacao"No streaming há claramente um problema de regulamentação e de acompanhamento rápido das entidades públicas e outras: de gestão de direitos de autor e conexos".

Uma questão: como olha para as plataformas de streaming. São o mal necessário? São uma inevitabilidade, há forma de contornar?

Não tenho dúvidas que vieram para ficar e não acho que haja forma de contornar. Isto faz parte do processo inevitável da evolução da tecnologia, transversal a quase todos setores culturais, artísticos e não só. Por outro lado, acho que os verdadeiros fãs e entusiastas dos formatos clássicos (vinil e onde já podemos colocar o CD) continuam a comprar estes formatos físicos. Acho incrível o retorno à produção dos LPs e à ideia de que um disco não é só a música mas é também a imagem, o grafismo a mensagem que o artista quer passar naquele disco. Alguns são verdadeiros ícones ou obras de arte. Ficariam bem emoldurados na parede. Dão uma informação adicional e complementar à música. É sempre possível contornar e ficar "off grid". Os percursos da música alternativa sempre se fizeram assim, fora do circuito comercial e sempre tiveram acesso às suas comunidades e seguidores. No streaming há claramente um problema de regulamentação e de acompanhamento rápido das entidades públicas e outras: de gestão de direitos de autor e conexos. Simplesmente não conseguem acompanhar o ritmo a que as coisas evoluem. Se calhar, do ponto de vista de quem cria, poderia ser mais justo. É neste sentido que acho que a música ao vivo, a experiência do concerto será sempre uma coisa única. É o que emociona as pessoas.

filipe.gil@dn.pt

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